Temos que comemorar muito as vacinas contra a COVID-19
A principal mensagem deste texto é de
alívio e enorme satisfação pela disponibilidade de vacinas eficazes para acabar
com essa pandemia em pouco tempo. O trabalho de muitos cientistas por vários
anos desenvolvendo tecnologias para vacinas, o foco intensificado em 2020 para
desenvolver vacinas específicas contra o SARS-CoV-2 e a sorte deste vírus ser “vacinável”
(há vários vírus para os quais todos os esforços científicos não foram
suficientes para criar uma vacina efetiva), geraram um resultado que devemos
celebrar / comemorar muito.
Historicamente, as principais doenças
infectocontagiosas não foram controladas por medidas médicas, tais como vacinas
e antibióticos. Melhorias nas condições de vida, incluindo alimentação,
habitação e higiene, foram os principais fatores que controlaram as principais
doenças infecciosas. Por exemplo, a tuberculose, que foi o principal matador
das populações humanas na Europa e nas Américas durante o século 19 e primeira
metade do século 20, teve quase todo seu declínio associado a melhorias nas
condições de vida; as contribuições da vacina e do antibiótico foram
relativamente pequenas. Quando vacina e tratamento efetivo para a tuberculose
finalmente foram descobertos e disponibilizados para a população, na década de
1950, quase todo o declínio de mortes pela tuberculose já havia ocorrido (ver
Thomas McKeown, The role of Medicine). Após a década de 1950, o declínio da
tuberculose acelerou marcadamente, atestando a grande efetividade da vacina e
do antibiótico no controle desta doença. Desde então, o resquício de casos de
tuberculose que continua a ameaçar a vida de muitas pessoas pode ser facilmente
tratado por antibióticos efetivos.
Felizmente, ainda que não tenha sido
descoberto um tratamento efetivo para tratar a COVID-19, foram descobertas
vacinas que efetivamente evitam esta doença. Em comparação com outros momentos
na história (incluindo a tuberculose nos séculos 19 e 20), estamos em uma
situação privilegiada; temos vacinas efetivas para lidar com uma pandemia
causada por um agente infeccioso novo na espécie humana, em menos de um ano de
duração da pandemia. Nossos antepassados nunca tiveram recurso médico /
farmacológico efetivo para lidar com doenças infectocontagiosas em tão pouco
tempo após a introdução da doença na espécie humana. Esta é uma situação
histórica inédita privilegiada.
O que as vacinas contra a COVID-19 nos proporcionam?
O que exatamente as vacinas
disponíveis contra a COVID-19 nos trazem de benefício?
Até este momento sabemos que elas
evitam que a pessoa vacinada tenha COVID-19. O que é uma pessoa com COVID-19? É
uma pessoa que sente algum dos sintomas típicos da COVID-19 e testa positivo
para a presença do vírus SARS-CoV-2. Esses sintomas são principalmente os
seguintes: febre (≥37,8), tosse, dificuldade para
respirar, perda de olfato e perda de paladar. Outros sintomas possíveis são:
dores musculares, calafrios, dor de cabeça, dor de garganta, diarreia,
congestão nasal, coriza, cansaço, enjoo, vômito e perda de apetite. Algumas
pessoas fazem quadros mais graves de COVID-19 que levam à necessidade de
internação hospitalar, tratamento hospitalar intensivo e em alguns casos até à
morte. Até o momento, não sabemos com certeza se as vacinas evitam
especificamente esses quadros mais graves.
O que as vacinas contra a COVID-19 parecem nos proporcionar?
Todas as análises dos dados dos
estudos clínicos de fase 3 das vacinas até este momento foram interinas. Nenhum
estudo já chegou ao final, por isso, há várias perguntas ainda não respondidas.
Mas, como a situação da pandemia é grave, os resultados interinos, ainda que
não conclusivos, podem indicar benefícios plausíveis (talvez até prováveis) que
serão confirmados ao final dos estudos. Como as probabilidades de danos das
vacinas parecem bem pequenas, vale a pena começar a usá-las mesmo antes de
todos os possíveis benefícios serem comprovados com bom grau de certeza.
Os resultados interinos sugerem que
as vacinas evitam os casos graves e mortes pela COVID-19. Ainda que o número de
casos graves e mortes tenha sido insuficiente até este momento para assegurar a
efetividade das vacinas em evitar esses casos, todos ocorreram nos
participantes que receberam o placebo e nenhum entre os que receberam a vacina.
Os resultados interinos sobre
infecções assintomáticas não foram divulgados até este momento. Mais ainda, não
sabemos se as vacinas proporcionam proteção contra a infecção pelo SARS-CoV-2.
Pode ser que as vacinas sejam capazes de evitar que o vírus cause sintomas de
COVID-19 em pessoas infectadas, mas não de evitar que o vírus se reproduza no
organismo da pessoa. Essa informação é crucial para sabermos se a vacina evita
a transmissão do SARS-CoV-2. As transmissões ocorrem a partir de pessoas
sintomáticas, pré-sintomáticas e assintomáticas. Se as vacinas não forem
capazes de evitar a reprodução do vírus no organismo da pessoa vacinada, ela
estará protegida da doença, mas poderá ainda assim transmitir o vírus para
outras pessoas. A falta dessa informação limita alternativas de priorização nos
programas de vacinação. Caso as vacinas evitem a reprodução do vírus (a
infecção), a alternativa possivelmente mais eficiente para acabar mais
rapidamente com a pandemia seria priorizar os grupos populacionais que mais
circulam pelas cidades e encontram com outras pessoas, por exemplo, os jovens.
Caso as vacinas evitem a doença, mas não evitem a infecção, a melhor
alternativa é priorizar os grupos populacionais mais suscetíveis às formas mais
graves da doença, por exemplo, os idosos.
O fato de não haver até este momento
evidência de que as vacinas evitem a infecção (a transmissão do vírus), evitem
casos graves e mortes, e de que elas protejam por pelo menos um ano, não
significa que haja evidência de que elas não proporcionem esses benefícios
(Tabela 1). Pelo contrário, parece que há evidências indiretas que nos permitem
ser otimistas. Por exemplo, em um grupo de 1.265 pessoas que teve COVID-19,
produziu anticorpos IgG e foi acompanhado por seis meses, houve apenas 2
pessoas com reinfecção pelo SARS-CoV-2 (2 em 1.265 = 1 em 633), ambas
assintomáticas (NEJM, 23 de dezembro de 2020, DOI: 10.1056/NEJMoa2034545), sugerindo que a reação
imune natural contra este vírus protege contra futuras infecções, por pelo
menos 6 meses (entre as pessoas que não tinham tido COVID-19 e eram IgG
negativas, foram 223 infecções em 11.364 = 1 em 51). Possivelmente (ou
provavelmente) a reação imune proporcionada pelas vacinas seja similar ou até
mais robusta, pois representa um “desafio” controlado / dosado para desencadear
a melhor resposta imune possível, i.e., a resposta imune “ideal” (uma adaptação
natural dificilmente evolui para proporcionar a melhor função possível; ela
tende a evoluir para proporcionar uma função suficiente, mas não ideal).
Esclarecendo mal-entendidos comuns
O que significa 95% de eficácia?
Respostas comuns:
1- Significa que 95% das pessoas vacinadas não terão COVID-19
(ou que de cada 100 pessoas vacinadas, 95 não terão COVID-19).
2- Significa que as pessoas vacinadas
terão 95% menos sintomas.
3- Significa que as pessoas vacinadas terão sintomas 95% mais
fracos.
Todas as três respostas acima estão
erradas.
Eficácia de 95% significa coisas
diferentes em diferentes populações. Vamos ver o que 95% de eficácia significou
na população do estudo da Pfizer-BioNTech (Pfizer), depois vamos simular o que
significaria na população brasileira e na população da Nova Zelândia.
No estudo da Pfizer, 18.198 indivíduos
receberam a vacina e 18.325 indivíduos receberam o placebo, que geraram 2.214
pessoas-ano no grupo de vacina e 2.222 pessoas-ano no grupo do placebo
(aproximadamente 2 meses de seguimento por pessoa nos dois grupos) sob risco de
adoecer antes da ocorrência do desfecho primário principal (sintomas de
COVID-19 confirmada com teste para presença do SARSCoV-2).[1]
No grupo da vacina, 8 pessoas tiveram COVID-19 e no grupo do placebo 162
tiveram COVID-19. Os cálculos da eficácia então foram os seguintes:
Incidência no grupo da vacina: 8 em 2.214 pessoas-ano = 0,0036≈0,004;
Incidência no grupo do placebo: 162 em 2.222 pessoas-ano = 0,0729≈0,07;
Razão de incidências = 0,0036/0,0729 = 0,049 ≈ 0,05;
Eficácia = 100 x (1-razão de incidências) = 100 x (0,95) =
95%.
Então, no grupo sem vacina, seria
como se a incidência fosse de 7% por ano (“seria” ao invés de “foi”, porque os
participantes não foram de fato acompanhados por um ano). Ou seja, em cada 1.000
pessoas não vacinadas, 70 contrairiam COVID-19 em um período de um ano. No
grupo vacinado, seria como se a incidência fosse de 0,4% por ano. Ou seja, em
cada 1.000 pessoas vacinadas, 4 teriam COVID-19 em um período de um ano. Essa
diferença de 70 em mil para 4 em mil (ou de 7% para 0,4%) é uma diferença de
95% menos casos entre os vacinados em comparação com os não vacinados. Isso é o
que significa 95% de eficácia (Figura 1).
Reparem então que a resposta 1 (95%
das pessoas vacinadas não terão COVID-19 ou de cada 100 vacinadas 95 não terão
COVID-19) está errada. No estudo da Pfizer, foram 18.198 vacinados (2.214
pessoas-ano) e 8 tiveram COVID-19. Então, a incidência de COVID-19 no grupo
vacinado foi 0,4%, ou seja, 99,6% das pessoas vacinadas não tiveram COVID-19 (e
não 95% como muitas pessoas têm falado). Em comparação, no grupo não vacinado,
93% não tiveram COVID-19. A resposta 2 (as pessoas vacinadas terão 95% menos
sintomas) está errada, pois os estudos não mediram quantos sintomas ou quantos
episódios de sintoma cada pessoa teve, portanto, a eficácia relatada pelos
estudos não se refere a isso. A resposta 3 (as pessoas vacinadas terão sintomas
95% mais fracos) está errada, pois os estudos também não mediram a intensidade
dos sintomas (por exemplo, fraco, moderado ou forte), então, a eficácia
relatada pelos estudos também não se refere a isso.
Em suma, neste momento, a eficácia
dessa vacina responde à seguinte pergunta: de cada 100 pessoas não
vacinadas que tiveram COVID-19, quantas não teriam tido se tivessem sido
vacinadas? No caso da vacina Pfizer, esse número foi 95 (ou 95% de
eficácia). Notem que o sublinhado realça o fato de que a eficácia se refere
apenas às pessoas que não tiveram COVID-19 devido ao uso da vacina. Como
muitas pessoas não contraem COVID-19 mesmo não tendo sido vacinadas, o
percentual de pessoas sem COVID-19 entre as vacinadas é maior do que 95% (99,6%
no caso da vacina Pfizer), pois inclui também as pessoas que não teriam
COVID-19 mesmo se não tivessem sido vacinadas.
Agora, vamos fazer uma simulação com
os dados da pandemia da COVID-19 no Brasil. O que significaria 95% de eficácia
considerando a incidência de COVID-19 no Brasil?
Houve 7.504.833 casos acumulados de
COVID-19 confirmados no Brasil até 27 de dezembro de 2020; isso equivale a uma incidência
de 3.571 pessoas por 100 mil habitantes no ano de 2020 ≈ 36 por mil. Se 100% da
população brasileira tivesse sido vacinada com uma vacina com 95% de eficácia,
teríamos tido 7.129.592 casos de COVID-19 a menos (ou 3.392 casos por 100 mil a
menos ou 34 casos por mil a menos) (Figura 2).
Para aplicar a eficácia de 95% em
populações com diferentes incidências de COVID-19 (ou em indivíduos com
diferentes probabilidades pré-vacina), basta multiplicar a incidência (ou a
probabilidade pré-vacina) por 0,05. Por exemplo: se a incidência for de 100%
nas pessoas não vacinadas, será de 5% nas vacinadas; se a incidência for de 50%
nas pessoas não vacinadas, será de 2,5% nas vacinadas; se a incidência for de
30% nas pessoas não vacinadas, será de 1,5% nas vacinadas.
Similarmente, se a vacina tiver
eficácia de 60% (esta foi a eficácia aproximada demonstrada pela vacina da
Oxford-AstraZeneca), multiplicar a incidência (ou a probabilidade pré-vacina)
por 0,4. Por exemplo: se a incidência for de 100% nas pessoas não vacinadas,
será de 40% nas vacinadas; se a incidência for de 50% nas pessoas não
vacinadas, será de 20% nas vacinadas; se a incidência for de 30% nas pessoas
não vacinadas, será de 12% nas vacinadas. A Figura 3 mostra a simulação para o
Brasil com uma vacina com 60% de eficácia; o que significaria 60% de eficácia
considerando a incidência de COVID-19 no Brasil? Nessa simulação, dos 210
milhões vacinados, quase 207 milhões não teriam contraído COVID-19. Isso
significa que usando a vacina com 60% de eficácia, 98,6% dos vacinados não
teriam tido COVID-19.
Do ponto de vista do indivíduo, o
papel mais importante da vacina é evitar a COVID-19 e seus quadros mais graves.
Do ponto de vista do controle da pandemia, o papel mais importante da vacina é
evitar a transmissão do SARS-CoV-2 de pessoa para pessoa. Vamos ver a seguir
como funciona o raciocínio do impacto da vacina do ponto de vista do indivíduo
(relevante para cada pessoa - o que eu ganho individualmente ao me vacinar) e
do ponto de vista da população (relevante para as autoridades de saúde pública
e governantes – o que a população da minha cidade ou país ganha se todas as
pessoas forem vacinadas).
Benefício da vacina sob o ponto de vista da população
(controle da pandemia)
Como vimos, a incidência da COVID-19
na população é um aspecto chave para interpretar a eficácia da vacina. A mesma
eficácia pode trazer muito benefício para uma população e pouco para outra. Por
exemplo, o Brasil teve em 2020 uma incidência bem maior do que a Nova Zelândia.
A princípio, então, a vacina traria mais benefício para o Brasil do que para a
Nova Zelândia. Entretanto, a Nova Zelândia conseguiu ter baixa incidência ao
custo de barreiras de entrada e saída de pessoas do país, de rastreamento e
isolamento de infectados e alguns outros cuidados para evitar a introdução e
transmissão do vírus. Com a vacina, a Nova Zelândia poderá relaxar esses
cuidados, o que é obviamente desejável. Então, para estimar o benefício da
vacina para a Nova Zelândia o correto é considerar a incidência esperada após o
relaxamento das medidas de contenção do vírus, ao invés da incidência observada
em 2020, quando o país adotou medidas extraordinárias para controlar a pandemia.
Todos os países desejam retornar aos
padrões de contato físico / aglomeração pré-pandemia, independentemente do
sucesso que tiveram nas políticas de distanciamento físico durante 2020. Por
isso, para avaliar o benefício da vacina em diferentes países, possivelmente o
correto é estimar a eficácia aplicada a três cenários plausíveis de incidência
esperada pós relaxamento das medidas de distanciamento físico. Esses três
cenários de incidência podem ser, por exemplo, os seguintes: 30%, 50% e 100%.
Na nova Zelândia, ocorreram 2.144
casos de COVID-19 até 27 de dezembro de 2020. Se toda a população tivesse sido
vacinada com uma vacina com 95% de eficácia teriam ocorrido 107 casos e, com
uma vacina de 60% de eficácia, 858 casos. Ou seja, usando uma vacina com 95% de
eficácia, ≈99,99% dentre os vacinados não teriam tido COVID-19; usando uma
vacina com 60% de eficácia, 99,98% dentre os vacinados não teriam tido COVID-19
(99,96% entre os não vacinados não tiveram COVID-19). Esses dados mostram que
os benefícios da vacina na Nova Zelândia teriam sido muito pequenos, pois a
incidência pré-vacina foi muito pequena (devido aos cuidados de isolamento).
Com o relaxamento das medidas de
contenção do vírus, a Nova Zelândia poderia esperar uma incidência de 30% até o
final de 2021, na ausência de vacina (devido à abertura do país para turismo e
cessação da quarentena de entrantes). Qual seria então o benefício da vacina na
Nova Zelândia neste cenário? A figura 4 mostra que, mesmo que toda a população seja
vacinada com uma vacina com 95% de eficácia, 72 mil pessoas iriam contrair a
COVID-19. Sem vacina, no entanto, o número de pessoas com COVID-19 seria
1.440.000. Como houve menos de 3 mil casos em 2020, possivelmente a Nova
Zelândia achasse inaceitável 72 mil casos em 2021. Assim sendo, aquele país poderia
optar por manter algumas medidas não farmacológicas de isolamento (algumas barreiras
no turismo por exemplo) e/ou rastreamento de infectados, mesmo após a vacinação
de toda a sua população com uma vacina com 95% de eficácia.
O benefício da vacina sob o ponto de
vista populacional é mais claro ainda para países com alta incidência da
COVID-19, como é o caso do Brasil. Ver seção “Impacto populacional das vacinas
no Brasil, presumindo que 100% da população seja vacinada”.
Figura 4. Simulação de incidência de 30% de COVID-19 na Nova Zelândia em 2021, após relaxamento das medidas de isolamento. A incidência de COVID-19 na Nova Zelândia neste cenário seria de 1.440.000 casos até o final de 2021. Se toda a população for vacinada com uma vacina com 95% de eficácia, 72.000 pessoas contrairiam COVID-19.
Benefício da vacina sob o ponto de vista do indivíduo (risco
de contrair COVID-19)
Dentro de uma população, a
probabilidade pré-vacina de contrair a COVID-19 é um aspecto chave para avaliar
a probabilidade de benefício da vacina para uma pessoa especificamente. Uma
pessoa com probabilidade pré-vacina alta (por exemplo, profissionais de saúde,
policiais e funcionários de supermercados e farmácias) tem maior probabilidade
de se beneficiar da vacina do que uma com probabilidade pré-vacina baixa. Todas
as pessoas gostariam de voltar a circular livremente pelas cidades, se
aglomerando fisicamente em diversas situações sociais, sem se preocupar em usar
máscaras ou evitar apertos de mão, abraços e outras formas de contato físico.
Também gostariam de viajar entrando e saindo de cidades e países, sem a
preocupação de contrair ou de transmitir a COVID-19. A vacina é o meio pelo
qual as pessoas esperam retomar a vida dessa forma, i.e., no padrão
pré-pandemia de contato físico. Dessa forma, a probabilidade pré-vacina de
contrair a COVID-19, com o início dos programas de vacinação, será bem maior do
que durante o ano de 2020, em que havia o distanciamento físico e a inexistência
de vacinas. Qual seria então a nova probabilidade de contrair COVID-19 diante
da possibilidade da vacinação e sem a preocupação com o distanciamento físico e
o uso de máscara?
Para ilustrar, vou apresentar como
seria o meu raciocínio sobre o benefício da vacina especificamente para mim,
como indivíduo. Durante 2020 pude permanecer praticamente isolado com minha mulher, pois meu trabalho pode ser adaptado para ser realizado 100% em
casa. Quase todas as compras de supermercado, farmácia e de alguns outros itens foram realizadas online. Depois de alguns meses confinado,
passei a sair para fazer exercício sozinho ao ar livre, aproximadamente três
vezes por semana. Resumindo, minha probabilidade pré-vacina de contrair COVID-19
foi bem pequena em 2020, provavelmente menor do que a incidência da COVID-19 na
população brasileira, que foi de aproximadamente 4%.
Suponho que minha probabilidade
pré-vacina foi de aproximadamente 1%. Isso significa que, se eu continuar com o
mesmo comportamento, i.e., tão isolado em 2021 quanto em 2020, o meu risco de
contrair COVID-19 em 2021 passaria de 1% para 0,05% se eu tomasse a vacina com
95% de eficácia ou para 0,4% se eu tomasse a de 60% de eficácia. Isso equivale a uma redução no risco de 10 em mil para 0,5 em mil (95% de eficácia) e de 10 em mil para 4 em mil (60%
eficácia). Neste caso, a probabilidade de eu me beneficiar da vacina seria bem
pequena, pois o risco de eu contrair COVID-19 foi bem pequeno, mesmo sem a
vacina.
Mas, como não quero continuar isolado
em 2021 e gostaria de retornar às atividades presenciais e a ter contato físico
próximo com as pessoas, a minha probabilidade pré-vacina de contrair a COVID-19
(ou seja, o meu risco de contrair COVID-19) aumentaria para aproximadamente 30%
(esse parece ser o risco de contrair COVID-19 entre pessoas que convivem com
algum membro da família que teve COVID-19). Como quero sair do isolamento, mas
não estou disposto a correr um risco de 30% (acho muito alto), pretendo sair do
isolamento domiciliar somente após tomar a vacina e se ela me proporcionar um
risco de contrair COVID-19 bem menor do que 30%. Então, qual é a probabilidade
de eu me beneficiar da vacina? O meu risco de contrair COVID-19 em 2021
passaria de 30% para 1,5% se eu tomasse a vacina com 95% de eficácia ou para
12% se eu tomasse a de 60% de eficácia. Isso equivale a uma redução do risco de
300 em mil para 15 em mil (95% de eficácia) e a 300 em mil para 120 em mil (60%
de eficácia). A probabilidade de eu me beneficiar da vacina seria bem grande,
especialmente da vacina com 95% de eficácia. Concluindo, para retornar às
atividades presenciais, eu não estou disposto a correr um risco de 300 em mil;
muito alto para mim. Mas, se a vacina reduzir o meu risco para 15 em mil, eu
acho bem aceitável (lembrando que meu risco é de aproximadamente 10 em mil,
estando totalmente isolado). Por outro lado, a vacina com 60% de eficácia
reduziria meu risco para 120 em mil (de 300 em mil sem vacina), o que está
acima do risco que eu estaria disposto a correr. Neste caso, eu tomaria a
vacina, mas continuaria relativamente isolado (provavelmente menos do que eu
fiquei em 2020).
Além desse raciocínio em termos de probabilidade de benefício próprio individual, caso a vacina evite a infecção (a transmissão do vírus), que é, como vimos, uma possibilidade plausível, ainda que não comprovada por enquanto, tomar a vacina protegeria não somente a mim, mas também as outras pessoas com as quais eu tenho contato físico. Tomar a vacina é, portanto, também um ato de cuidado com o próximo, pois protege (possivelmente) as outras pessoas da infecção pelo SARS-CoV-2. Além disso, quanto mais pessoas tomarem a vacina, mais cedo atingiremos a tão almejada imunidade de grupo (ou imunidade de rebanho).
Este é só um exemplo de como uma
pessoa pode fazer escolhas bem informadas, juntando a informação científica
sobre a eficácia da vacina, com a probabilidade pré-vacina de contrair a
COVID-19 e o julgamento individual subjetivo do quanto risco está disposta a
correr (e fazer as outras pessoas correrem) para sair do isolamento domiciliar.
As duas primeiras se baseiam em informação científica objetiva (deve ser a
mesma para todas as pessoas), enquanto a última é um julgamento subjetivo
individual e pode variar de pessoa para pessoa.
Impacto populacional das vacinas no
Brasil, presumindo que 100% da população seja vacinada
Se a eficácia da vacina for de 95% ou
de 60%, quais seriam os impactos das vacinas no Brasil, em um cenário de
restrições como foi em 2020 e em um cenário de alívio das restrições como
esperamos que seja em 2021?
Primeiro, uma simulação com os dados
da incidência de COVID-19 no Brasil em 2020 (7.504.833 =3,6%),
para uma vacina com 95% de eficácia e outra com 60% de eficácia. Essa
incidência de COVID-19 no Brasil ocorreu durante grandes esforços de
distanciamento físico, fechamento de comércio e escolas, uso de máscara e
outras medidas não farmacológicas para evitar a transmissão do vírus, portanto,
é uma incidência bem mais baixa do que a esperada em circunstâncias normais de
vida. Alternativamente, uma outra simulação caso a incidência esperada
(pré-vacina) de COVID-19 seja de 30% entre os não vacinados no ano de
2021 (63.000.000). Essa é uma incidência plausível considerando a
transmissibilidade do vírus SARS-CoV-2 em circunstâncias normais de vida sem
esforços de distanciamento físico e outras medidas não farmacológicas para
contenção do vírus. Essas duas simulações esclarecem que tanto a eficácia de
95% quanto a de 60% são relevantes, principalmente quando a incidência esperada
é mais alta, como será com o alívio das medidas de distanciamento físico. Por
exemplo, em uma população com incidência esperada de 30% de COVID-19 em não
vacinados, uma vacina com eficácia de 60% proporcionaria que 88% dos vacinados
não tivessem COVID-19, ao invés de 70% (Tabela 2).
P.S. Há obviamente simulações bem mais sofisticadas e
acuradas realizadas por especialistas em modelagem matemática de vacinas que
informam os tomadores de decisões públicas.
Texto escrito entre a última semana de dezembro de 2020 e a
primeira semana de janeiro de 2021.
Paulo
Nadanovsky.
Epidemiologista
FIOCRUZ e UERJ.
[1]
Acompanhar 2 mil pessoas pelo período de um ano equivale a acompanhar 4 mil
pessoas por 6 meses ou 8 mil pessoas por 3 meses ou 16 mil pessoas por 1,5 mês.