quarta-feira, 30 de setembro de 2020

A pandemia da COVID-19 e o relaxamento das medidas restritivas no Brasil

 

É compreensível que após testemunhar uma grande redução no número de mortes pela COVID-19 as pessoas em alguns países tenham relaxado as medidas de isolamento. Mais difícil de entender e de aceitar é constatar o retorno de atividades não essenciais nos EUA e especialmente no Brasil, onde o número de mortes continua muito elevado. Desde o início desta pandemia até o dia 28 de setembro de 2020, os EUA sofreram 19.006 novas mortes na semana mais fatal e 4.070 na menos fatal depois deste pico, uma redução de 14.936 mortes em termos absolutos e de cinco vezes em termos relativos (Figura 1). No Brasil a semana mais fatal matou 7.677 e a menos, depois deste pico, 4.759 pessoas, uma diferença de 2.918 mortes, o que significa uma redução de apenas 1,6 vez. Desde então, não houve mais redução no número de novas mortes por semana no Brasil (Figura 1).

 

Figura 1. Número de novas mortes confirmadas por COVID-19 em uma semana. O eixo horizontal representa a semana mais fatal desde o início da pandemia, em março, até 28 de setembro de 2020 (1), a semana menos fatal depois de 1 (2) e a semana mais recente (findada em 28 de setembro de 2020) (3). O eixo vertical mostra o número acumulado de novas mortes na semana. O que chama mais atenção é a pequena mudança de 1 a 2 no Brasil, tão menor em comparação com os países desenvolvidos analisados aqui. Esses países também sofreram muitas mortes na semana mais fatal, mas reduziram drasticamente este número. Por isso, a inclinação da reta entre 1 e 2 nos outros países é bem maior do que no Brasil. A Coreia do Sul é a grande exceção positiva, pois conseguiu manter o número de novas mortes sempre em um nível muito baixo; por isso a linha da Coreia está praticamente horizontal desde a semana mais fatal (1), passando pela menos fatal após 1 (2) até a mais recente (3).

 

Em contraste com os EUA e especialmente com o Brasil, Reino Unido, Itália e Espanha tiveram entre cinco a sete mil mortes cada na semana mais fatal, mas reduziram drasticamente este alto número de mortes para menos de 50 mortes na semana menos fatal após este pico, com reduções de 135 a 506 vezes no número de mortes. Desde então, houve aumentos no número de mortes semanais confirmadas para 128 na Itália, 211 no Reino Unido e 737 na Espanha, na semana finalizada em 28 de setembro de 2020. Espanha e Reino Unido reintroduziram medidas restritivas diante deste aumento recente no número de mortes, ainda que ele esteja longe das mais de seis mil mortes nas semanas mais fatais. A Coreia do Sul é uma grande estória de sucesso, pois conseguiu manter o número de novas mortes semanais abaixo de 50 mesmo na semana mais fatal da pandemia naquele país (Tabela 1).

 


Tabela 1. Número de novas mortes confirmadas por COVID-19 em uma semana. Coluna denominada “maior número” representa a semana mais fatal da pandemia, até 28 de setembro de 2020, nos respectivos países incluídos na tabela. Coluna “menor número” representa a semana menos fatal após este pico e “mais recente” a semana findada em 28 de setembro de 2020. O que chama mais atenção é a pouca redução no número de mortes no Brasil (entre a semana com o maior número de mortes, i.e., mais fatal, e a semana com o menor número de mortes após este pico, i.e., menos fatal) e o sucesso da Coreia do Sul em manter o número de mortes abaixo de 50, até mesmo na semana mais fatal naquele país. Chama a atenção também a manutenção do alto número de mortes na semana mais recente, tanto no Brasil quanto nos EUA. Finalmente, todos os países estão testemunhando um aumento recente no número de mortes, o que fica caracterizado pelos números positivos na coluna da diferença entre a semana mais recente e a com o menor número de mortes depois do pico (penúltima coluna).



Curiosamente, a sociedade brasileira, com quase cinco mil novas mortes confirmadas na semana findada em 28 de setembro de 2020, vem testemunhando uma tendência comportamental na direção oposta ao esperado, ou seja, diminuindo as medidas restritivas. Atividades de lazer claramente não essenciais, tais como ir à praia, bar, restaurante e a prática de esportes coletivos foram retomadas por um grande número de pessoas, mesmo em cidades como o Rio de Janeiro, onde ainda têm sido confirmadas entre 200 e 400 novas mortes por COVID-19 por semana nas últimas 12 semanas (Figura 2). Shopping centres também já estão abrindo para compras presenciais e escolas para a presença física de alunos, professores e funcionários.

 

Figura 2. Cidade do Rio de Janeiro. Número de registros de novas mortes no eixo vertical. Cada barra representa uma semana. Por exemplo, a semana mais recente é representada pela barra 21-27/set; no Rio foram 354 novos registros de mortes pela COVID-19 de segunda-feira dia 21/9 a domingo dia 27/9.

 

 

Este comportamento aparentemente contraditório da população e das autoridades brasileiras precisa ser entendido. Contraditório porque a redução no número de novas mortes confirmadas pela COVID-19 no Brasil foi muito pequena, mas ainda assim autoridades e população concordam em relaxar as medidas de restrição de mobilidade e convívio social não essenciais. Ou seja, no passado recente houve no Brasil a aceitação de que devido ao número alto de mortes pela COVID-19 deveria haver restrições das atividades não essenciais, mas agora, passadas algumas semanas, o número de novas mortes confirmadas continua alto (redução foi somente de 1,6 vez, para aproximadamente 5 mil mortes semanais, em contraste com reduções de 135 a 506 vezes para menos de 50 mortes na Itália, Espanha e Reino Unido), não se aceita mais as mesmas restrições. Por quê?

 

O que mudou na pandemia no Brasil que estimulou o relaxamento, permitindo o retorno de atividades não essenciais?

 

Desde o texto mais recente deste blog em 27 de julho de 2020, portanto há dois meses, testemunhamos alguns eventos surpreendentes e difíceis de entender. Naquela ocasião eu escrevi o seguinte sobre o relaxamento das restrições às atividades não essenciais: “... é possível que as normas mais intensificadas de higiene, a atenção ao distanciamento físico, o uso de máscara, a imunidade adquirida nesta e em exposições a outros vírus e a atenuação evolutiva do SARS-CoV-2, evitem o aumento no número de mortes e até o reduzam. No entanto, é importante ter em mente que esta é uma aposta incerta e um risco que deve ser corrido de forma consciente. A aposta que está sendo feita é o relaxamento das restrições de mobilidade em um momento em que a transmissão do vírus ainda é muito alta e não há sistema robusto de identificação de infectados e rastreamento de seus contatos.” O resultado da aposta foi que, surpreendentemente, o relaxamento das restrições de mobilidade não foi associado a um aumento nas mortes pela COVID-19 na cidade do Rio de Janeiro; nos dois meses mais recentes, desde o final de julho até hoje final de setembro, período em que houve nítido relaxamento das restrições de circulação e aglomeração, o número de novas mortes confirmadas pela COVID-19 permaneceu entre 200 e 400 por semana (Figura 2).

 

Além disso e mais surpreendentemente, o excesso de mortalidade total que constatamos nos meses de abril e maio na cidade do Rio de Janeiro (2.788 e 4.583 mortes em excesso em 2020 em relação à média dos mesmos meses em 2018 e 2019) foi desaparecendo em junho (330 mortes em excesso) e reverteu em julho e agosto (660 e 355 mortes a menos, respectivamente, em 2020) (Tabela 2). Como interpretar mortes a menos em julho e agosto de 2020, meses em que houve entre 300 a 400 novas mortes por semana confirmadas por COVID-19? Se o número de mortes por outras causas permaneceu similar em 2018, 2019 e 2020, deveríamos constatar um excesso de 1.200 a 1.600 mortes em 2020, devido às mortes pela COVID-19 em 2020. Uma possível explicação para não ter havido esse excesso na mortalidade total a despeito do grande número de mortes pela COVID-19 em 2020 é a redução no número de mortes por outras causas em 2020 devida às medidas para conter a transmissão do SARS-CoV-2. Por exemplo, com a restrição de mobilidade na cidade, deve ter reduzido o número de mortes no trânsito e por homicídio. Com os cuidados higiênicos, o distanciamento social e o uso de máscara, deve ter reduzido mortes por outras viroses e doenças bacterianas. Com o redirecionamento dos cuidados médicos para a COVID-19 e o consequente racionamento dos tratamentos médicos eletivos de uma forma geral, deve ter reduzido o número de mortes por excesso de tratamentos médicos.

 

Tabela 2. Registro de óbitos por todas as causas na cidade do Rio de Janeiro. Números absolutos de mortes.


De qualquer forma, o número de novas mortes pela COVID-19 continuou alto durante esses dois meses mais recentes, período em que as pessoas foram relaxando cada vez mais as medidas de distanciamento social. Isso ocorreu no Brasil de uma forma geral, em locais com surtos mais recentes e mesmo em cidades onde o surto iniciou há muitos meses e continua com uma alta transmissão do vírus, como as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo (Figuras 2 e 3).

 

Figura 3. Cidade de São Paulo. Número de registros de novas mortes no eixo vertical. Cada barra representa uma semana. Por exemplo, a semana mais recente é representada pela barra 21-27/set; em São Paulo foram 222 novos registros de mortes pela COVID-19 de segunda-feira dia 21/9 a domingo dia 27/9.

 

Como vimos, o relaxamento no Brasil não pode ser explicado por alguma grande redução no número de novas mortes confirmadas pela COVID-19. O cansaço e o tédio do isolamento social podem ser uma razão. Além disso, há pessoas que precisam voltar a trabalhar fora de casa para conseguir sobreviver ou manter seu padrão de vida. Destaquei a frase anterior porque essas são motivações moralmente legítimas e, provavelmente, a razão mais forte para o relaxamento do confinamento domiciliar por uma grande parte da população brasileira. Porém, essa explicação por si só não basta. Vamos considerar um cenário hipotético em que a letalidade deste vírus fosse muito mais alta. Por exemplo, se a mortalidade entre os infectados fosse algo em torno de 50% (ou seja, para cada duas pessoas infectadas uma morresse), indubitavelmente não haveria muita dificuldade em convencer as pessoas, autoridades e governos a manter o isolamento social e as medidas de restrição às atividades não essenciais – pelo menos praia, bar, restaurante, esportes coletivos, shopping centres e escolas.

 

O valor que a sociedade brasileira atribui à vida humana

 

Minha hipótese para explicar o recente relaxamento das medidas de restrição de mobilidade no Brasil é a seguinte: população e autoridades perceberam que o número de mortes pela COVID-19 parou de crescer. Este fato forneceu uma ideia mais clara do risco de morrer por essa doença. Antes não tínhamos ideia do “tamanho da besta”, ou seja, não sabíamos onde poderíamos chegar no número de novas mortes. Passados quase três meses, não houve grande redução no número de novas mortes, mas também não houve aumento. Essa estabilidade no número de novas mortes foi testemunhada mesmo em cidades onde houve aumento na circulação e aglomeração de pessoas. Falta somente um detalhe para completar a explicação: o valor que a sociedade brasileira atribui à vida humana.

 

Conviver com 5.000 mortes adicionais por semana devido a uma nova doença parece ser aceitável para a sociedade brasileira. Por exemplo, aqui há aproximadamente 60 mil e 45 mil mortes por assassinato e por acidente de trânsito por ano, respectivamente. Considerando o tamanho da população, temos no Brasil 30 assassinatos e 22 mortes no trânsito por 100 mil habitantes por ano. Na Itália, Espanha e Reino Unido, é 1 ou menos assassinato por 100 mil habitantes por ano. Ou seja, 30 vezes a menos que no Brasil. Mortes no trânsito nesses três países não passam de 5 por 100 mil habitantes por ano.

 

Portanto, a sociedade brasileira convive com riscos de morrer por causas evitáveis muito mais altos do que as sociedades em países desenvolvidos. Por que com a COVID-19 seria diferente?


segunda-feira, 27 de julho de 2020

Convivendo com mil novos registros diários de mortes pela COVID-19 no Brasil

Mil mortes e abertura de comércio, serviços e escolas

Já estamos há várias semanas registrando aproximadamente mil novas mortes por dia no Brasil por COVID-19. Nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro esses valores têm variado aproximadamente entre 600 e 400 novos registros de mortes por semana. Na semana passada esses registros reduziram para 444 mortes em São Paulo e 320 no Rio de Janeiro (Figura 1).

 

Figura 1. Número de registros de novas mortes no eixo vertical (escala linear). Cada barra representa uma semana. Por exemplo, a semana mais recente é representada pela barra 20-26/jul; em São Paulo foram 444 novos registros de mortes pela COVID-19 de segunda-feira dia 20/7 a domingo dia 26/7.


Não é possível prever por quanto tempo conviveremos com esse nível de mortes pela COVID-19. Nas próximas semanas pode haver um aumento nas mortes por esta doença, pois muitas pessoas que estavam isoladas passaram a sair de casa e a se expor ao vírus SARS-CoV-2 pela primeira vez. Além disso, mesmo aquelas que não estavam confinadas parecem ter relaxado os cuidados de distanciamento físico. Um aumento no número de mortes é previsível devido à abertura do comércio, do lazer, de bares e restaurantes e possivelmente de escolas. Se metade da população se enquadrar nesta categoria (estava isolada e passou a sair de casa), podemos testemunhar uma duplicação no número de mortes, para aproximadamente duas mil novas mortes diárias registradas no Brasil sendo mil por semana na cidade de São Paulo e 700 por semana na cidade do Rio de Janeiro. Além disso, com o aumento da mobilidade devem iniciar em outras cidades (até então livres do vírus) surtos do SARS-CoV-2 a partir do vírus importado de cidades como São Paulo, Rio e outras que já apresentam surtos locais.

Por outro lado, é possível que as normas mais intensificadas de higiene, a atenção ao distanciamento físico, o uso de máscara, a imunidade adquirida nesta e em exposições a outros vírus e a atenuação evolutiva do SARS-CoV-2, evitem o aumento no número de mortes e até o reduzam. No entanto, é importante ter em mente que esta é uma aposta incerta e um risco que deve ser corrido de forma consciente. A aposta que está sendo feita é o relaxamento das restrições de mobilidade em um momento em que a transmissão do vírus ainda é muito alta e não há sistema robusto de identificação de infectados e rastreamento de seus contatos.

Excesso de mortalidade por todas as causas

A restrição da mobilidade, do comércio, dos serviços e das escolas reduzem o risco de morte não somente pela COVID-19, mas também por outras causas, tais como acidente de trânsito, homicídio e outras doenças infectocontagiosas. Além disso, ainda que o acesso limitado aos serviços de saúde durante a pandemia da COVID-19 possa aumentar o risco de mortes por falta de tratamentos médicos necessários, ele pode diminuir o risco de mortes pela redução de tratamentos médicos desnecessários (https://www.bmj.com/too-much-medicine). Por exemplo, a menor exposição da população aos serviços de saúde durante a pandemia pode reduzir os casos de infecção hospitalar, de exames, cirurgias e radiações desnecessárias danosas, de tratamento precoce em programas de rastreamento que trazem mais danos do que benefícios para os participantes.

Portanto, o relaxamento das restrições de mobilidade tem potencial de aumentar não somente o risco de mortes pela COVID-19, mas também por outras causas de mortes. Por isso, a partir deste momento, pode ser útil conhecermos o nosso risco de morrer não somente pela COVID-19, mas por qualquer causa, durante a pandemia.

Uma forma de conhecermos este risco é calcular o excesso de mortalidade. O excesso de mortalidade pode ser estimado comparando a mortalidade por todas as causas (mortalidade total) nos meses da pandemia em 2020 com a mortalidade total nos mesmos meses de anos anteriores. A diferença entre a mortalidade total em 2020 e nos anos anteriores (i.e., o excesso de mortalidade) pode ser atribuída à pandemia. Parte desta diferença é devida à morte pela COVID-19 diretamente, que surgiu em 2020, mas não existia em anos anteriores, mas parte é devida indiretamente a mudanças em outras causas de morte durante a pandemia

(https://nadanovsky.blogspot.com/2020/05/comparacao-do-risco-de-morrer-pela_31.html).

O excesso de mortalidade geral é um indicador útil não somente para termos uma ideia do impacto da pandemia no risco de morrer de uma forma geral, mas também para não sermos enganados pela possível subnotificação de mortes pela COVID-19; a subnotificação pode ocorrer por diversas razões, incluindo a falta de testes laboratoriais para confirmação da doença e a manipulação de dados por motivações políticas.

Como temos convivido em semanas recentes com uma incidência relativamente constante de registro de novas mortes diárias, é interessante, do ponto de vista do indivíduo, verificar o impacto da pandemia no risco de morrer para cada 100 mil habitantes, pois ele pode representar um risco relativamente estável pelo menos nos próximos meses ou semanas. É importante notar que o risco relatado neste texto é a média na população toda, mas na realidade, o risco é maior nas pessoas mais velhas e menor nas mais jovens.   

Cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro

Em São Paulo houve excesso de 2510, 2188 e 3058 mortes em abril, maio e junho de 2020, respectivamente, comparado com as médias desses meses em 2018 e 2019 (https://transparencia.registrocivil.org.br/registros - consultado em 25 de julho de 2020). Por exemplo, em junho de 2018 e 2019 morreram em média 64 pessoas por 100 mil habitantes, enquanto em junho de 2020 morreram 88 por 100 mil. Isso significa que houve excesso de 24 mortes por cada 100 mil habitantes em junho de 2020 (Tabelas 1 e 2).

  

Tabela 1. Registro de óbitos por todas as causas nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro – Números absolutos de mortes.

  

Tabela 2. Registro de óbitos por todas as causas nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro - Mortes por 100 mil habitantes.

 

 Para termos uma ideia do que este excesso de mortalidade significa, em 2017, a taxa mensal de mortes por 100 mil habitantes no Brasil pelas seguintes causas foram: cardiovasculares 16, cânceres 10, homicídios 3, trânsito 2

 (https://nadanovsky.blogspot.com/2020/05/comparacao-do-risco-de-morrer-pela_31.html).

 No Rio de Janeiro houve excesso de 41, 68 e 5 mortes por mil habitantes, em abril, maio e junho de 2020 (possivelmente os registros de mortes em junho no Rio de Janeiro estejam atrasados, o que justificaria a redução abrupta no número de registros de mortes – faremos novamente esta análise em meados ou final de agosto, para atualizar os dados de junho).

Conclusão

O excesso de mortalidade nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro nos meses da pandemia (abril, maio e junho de 2020) fez com que o risco de morrer nessas cidades aumentasse num grau acima do risco imposto pelos principais matadores habituais, por exemplo, doenças cardiovasculares (16 por 100 mil), cânceres (10 por 100 mil), homicídios (3 por 100 mil), trânsito (2 por 100 mil); em São Paulo, o excesso de mortalidade variou de 18 a 24 por 100 mil nos meses de abril, maio e junho de 2020. Com o relaxamento da restrição de mobilidade é esperado que a situação atual, que já é calamitosa, piore ainda mais, pois é plausível que aumente não somente as mortes pela COVID-19, mas também no trânsito, por homicídio, por outras doenças infectocontagiosas e pelo retorno da medicina em excesso (https://www.bmj.com/too-much-medicine).

 

 


domingo, 14 de junho de 2020

As explicações dos “diversos surtos” ou da “população grande e dimensão continental” não são convincentes para justificar porque o Brasil continua apresentando números mais altos de infecções e mortes diárias


14 de junho de 2020

Três meses após a primeira morte registrada pela COVID-19 o Brasil apresenta trajetória estranha

Tempo decorrido entre a primeira morte e o pico das mortes diárias

Todos os países que temos acompanhado neste blog começaram a reduzir o número diário de mortes registradas até um mês e meio depois da primeira morte registrada pela COVID-19: Itália, 37 dias depois; Espanha, 31 dias; EUA, 46 dias; Reino Unido, 37 dias. O Brasil começou a reduzir este número muito mais tarde: somente 79 dias após a primeira morte registrada (e ainda é cedo para concluir que o número de mortes registradas começou a reduzir consistentemente, pois passaram apenas seis dias após este suposto “pico” - figura 1).[1]

Tempo decorrido entre o início do confinamento domiciliar e o pico das mortes diárias

Outra característica estranha desta primeira onda da pandemia no Brasil foi o tempo decorrido entre o início do confinamento domiciliar e o pico das mortes diárias (i.e., o momento em que não houve mais crescimento no número de registros de mortes diárias). O Brasil já dava sinais preocupantes desde o final de abril. Nos outros países o pico ocorreu aproximadamente três semanas após o início do confinamento domiciliar: na Itália, 21 dias depois; na Espanha, 21 dias; no Reino Unido, 18 dias; nos EUA, 18 dias. No Brasil, o confinamento iniciou na barra do 7º dia. De acordo com o padrão identificado nos outros países acompanhados aqui, o pico deveria ter sido atingido 18 a 21 dias depois, i.e., pelo menos na barra do 28º dia. No entanto, as barras subsequentes demonstraram que o número de mortes diárias continuou crescendo. Identificamos, portanto, algo estranho no Brasil. Teoricamente o confinamento domiciliar reduz imediatamente e drasticamente o número de infecções e essa redução nas infecções deve reduzir o número de mortes de COVID-19 a partir da terceira semana seguinte. Nos outros países isto de fato ocorreu. Mas, no Brasil, chegamos a quase 300 mortes diárias nos 40º-42º dias, sem sinal ainda de que tínhamos atingido o pico (https://nadanovsky.blogspot.com/2020/04/por-que-o-brasil-mesmo-depois-de-mais.html). Esse crescimento continuou pelos menos até o 79º-81º dia, quando foram registradas 1.361 mortes no Brasil (figura 1).


Figura 1. Número de mortes (eixo vertical) em escala linear.
* Dia 1, primeira barra de cada país (dia em que houve a primeira morte registrada de COVID-19): Brasil, Março 17; Itália, Fevereiro 21; Espanha, Março 1; EUA, Fevereiro 29; Reino Unido, Março 5.

Lideranças políticas e confinamento domiciliar

Consideramos algumas explicações para essa discrepância entre o Brasil e os outros países e concluímos no final de abril que possivelmente a principal diferença tenha sido as lideranças políticas. As autoridades naqueles países foram firmes e consistentes na recomendação e aplicação do confinamento domiciliar, quando resolveram adotá-lo. No Brasil, o confinamento domiciliar pode não ter sido respeitado de forma tão ampla como nos outros países analisados aqui. Por exemplo, o presidente do Brasil Jair Bolsonaro tem expressado de forma explícita e consistente, desde o início desta pandemia, que ele não concorda com o confinamento domiciliar. Esta atitude da principal autoridade do país pode ter motivado muitas pessoas a não aderirem ao confinamento. Além disso, naturalmente, o governo federal não fez um esforço suficiente de apoio financeiro às pessoas que não têm condições de ficar em casa. Portanto, o confinamento domiciliar no Brasil pode ter sido, na prática, algo diferente do que foi nesses outros países. Esta explicação parece bem plausível, ainda mais se considerarmos os vários sistemas de vigilância que relatam um percentual alto de circulação de pessoas e veículos nas cidades durante o período de confinamento. Concluímos naquela ocasião que o confinamento domiciliar foi adotado, de fato, apenas por uma quantidade insuficiente da população (https://nadanovsky.blogspot.com/2020/04/por-que-o-brasil-mesmo-depois-de-mais.html).

As explicações dos “diversos surtos” ou da “população grande e dimensão continental” não são convincentes para justificar porque o Brasil continua apresentando números mais altos de infecções e mortes diárias

Uma explicação comum para o número alto persistente de mortes diárias no Brasil é que aqui há não um surto nacional, mas vários surtos locais ou regionais, cada um em um momento no tempo. Como se o Brasil pudesse ser entendido não apenas como um país, mas alguns países, com surtos relativamente independentes em momentos diferentes. Supostamente, tudo isso se agravaria pelo fato do Brasil ser um país muito populoso e de dimensões continentais. Essas explicações não são convincentes por várias razões.

Outros países também poderiam potencialmente ter apresentado vários surtos persistentes locais ou regionais. Por exemplo, Espanha, Itália e Reino Unido recebem uma quantidade muito maior de turistas todos os anos do que o Brasil e eles visitam diversas regiões desses países (https://en.wikipedia.org/wiki/World_Tourism_rankings). Por isso, a probabilidade de introdução de pessoas infectadas pode ter sido maior na Espanha (82 milhões de turistas), na Itália (62 milhões) e no Reino Unido (36 Milhões) do que no Brasil (7 milhões); o SARS-CoV-2 foi um vírus importado tanto para esses países como para o Brasil. Na Espanha, Itália e Reino Unido os cidadãos se deslocam entre diferentes regiões e nada indica que isso ocorra mais no Brasil do que nesses países. O número de viagens domésticas em que as pessoas dormiram pelo menos uma noite fora foi o seguinte em 2018: Espanha, 425 milhões; Itália, 145 milhões; Reino Unido, 1 bilhão e 800 milhões; Brasil, sem dados  (https://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSetCode=TOURISM_DOMESTIC);

Há vários milhões de pessoas suscetíveis nesses países e o número de pessoas infectadas poderia aumentar muitas vezes antes que o tamanho populacional oferecesse um teto para novas infecções (pelo tamanho populacional ou pela imunidade de grupo): Espanha, população de 46 milhões e 27 mil mortes pela COVID-19; Itália, população de 60 milhões e 34 mil mortes; Reino Unido, população de 66 milhões e 41 mil mortes (https://ourworldindata.org/covid-deaths). A Espanha realizou pesquisa nacional com o teste sorológico e constatou que apenas 5% da população tinha anticorpos contra o SARS-CoV-2 (https://www.ciencia.gob.es/stfls/MICINN/Ministerio/FICHEROS/ENECOVID_Informe_preliminar_cierre_primera_ronda_13Mayo2020.pdf). Portanto, o tamanho populacional parece não ser uma razão plausível para as mortes pela COVID-19 não terem sido mais numerosas e persistentes nesses países, assim como estão sendo no Brasil, pois lá, como aqui, também há pessoas suscetíveis de sobra para serem infectadas.

Resumindo, o tamanho da população no Brasil não parece uma justificativa plausível para o número maior de infectados do que nesses países, para o número maior de surtos locais ou regionais em momentos diferentes e para a persistência mais longa da onda de mortes brasileira. Na realidade, poderia se esperar mais surtos espalhados na Espanha, na Itália e no Reino Unido do que no Brasil, pois pelo número de turistas e mobilidade interna, nesses países possivelmente houve um número maior e mais espalhado de introduções de infecções pelo vírus do que no Brasil. Os EUA, com um padrão de pandemia mais similar ao Brasil, também apresentaram surtos locais e regionais em momentos diversos. O fato é que esses países, incluindo os EUA, conseguiram evitar o aparecimento ou o crescimento de surtos locais e regionais, de forma que em aproximadamente um mês e meio já tinham atingido o pico nacional de mortes diárias. O Brasil é o outlier nesta história, seguido pelos EUA (figura 1).

Como explicar o forte declínio no número de registros de novas mortes em Manaus?[2]

O Brasil foi o primeiro país a relaxar o confinamento domiciliar antes de identificar redução clara e consistente no número de registros de novas mortes. A consequência disso é imprevisível. Por um lado, há uma proporção grande de pessoas sem anticorpos na população (http://epidemio-ufpel.org.br/uploads/downloads/19c528cc30e4e5a90d9f71e56f8808ec.pdf), indicando que existem ainda muitas oportunidades para o vírus se espalhar aumentando continuamente o número de infecções e mortes pela COVID-19. Por outro lado, há situações como na cidade de Manaus, onde inexplicavelmente há uma redução no número de registros de novas mortes (figura 2). A cidade de São Paulo, onde a pandemia iniciou no Brasil, parece ter atingido o pico na semana de 25 a 31 de maio, relatando um total de 746 mortes naquela semana. A cidade do Rio de Janeiro parece ter atingido o pico na semana de 18 a 24 de maio com 914 mortes. Nenhuma das duas cidades mostrou um declínio grande e consistente no número de novas mortes desde aquelas datas.[3] Manaus atingiu o pico na semana de 4 a 10 de maio, com 284 mortes naquela semana e, desde então, tem mostrado uma redução grande e consistente no número de novas mortes registradas; mas, é importante notar que na semana passada (8 a 14 de junho) o número de mortes registradas subiu para 148, em comparação com as 100 registradas na semana anterior (figura 2).


Figura 2. Número de mortes (eixo vertical) em escala linear.

Em Manaus a proporção de pessoas com anticorpos era 13% entre 14 e 21 de maio e 15% entre 4 e 7 de junho de 2020 (http://epidemio-ufpel.org.br/uploads/downloads/19c528cc30e4e5a90d9f71e56f8808ec.pdf). Isso significa que o forte declínio no número de registros de novas mortes em Manaus entre 11 de maio e 7 de junho tenha ocorrido em uma população com aproximadamente 85% de pessoas suscetíveis na população. Se o R0 do SARS-CoV-2 for 3[4] – há a estimativa que seja algo em torno de 3 e 4 (https://www.imperial.ac.uk/mrc-global-infectious-disease-analysis/covid-19/report-21-brazil/), seria necessário por volta de 70% de pessoas com anticorpos (ou não mais do que 30% suscetíveis) para impedir o crescimento nas infecções.

Como explicar que com 85% das pessoas ainda suscetíveis, Manaus esteja reduzindo tanto as infecções?

No início de maio o Re do SARS-CoV-2[5] no Amazonas parece ter caído para 1,58, já em consequência das medidas sociais para o combate ao vírus (https://www.imperial.ac.uk/mrc-global-infectious-disease-analysis/covid-19/report-21-brazil/). Mas, com um Re deste valor as infecções ainda aumentam. Portanto, a imunidade de grupo e a redução no R devido às medidas restritivas não parecem ter sido suficientes para explicar o declínio das infecções em Manaus.

Uma possibilidade é que os 15% que se infectaram fossem justamente as pessoas que viviam mais aglomeradas e seus contatos, portanto, estavam mais expostas ao vírus. Pode ser que as 85% ainda sem anticorpos vivam em áreas de menor densidade demográfica, não circulem pela cidade (ou não circularam neste período analisado) ou tenham alguma característica imunológica que as torne menos suscetíveis a este vírus. Devido a diferenças na susceptibilidade individual, possivelmente as pessoas mais suscetíveis ao vírus tenham falecido, restando após o primeiro surto pessoas mais resistentes. Além disso, pode ser que a população de uma forma geral tenha se assustado com o aumento na quantidade de infecções e de mortes e, consequentemente, passou a tomar mais cuidados higiênicos e de distanciamento físico.

Possivelmente, as mesmas razões aventadas aqui para explicar o declínio das mortes em Manaus sirvam também para explicar a aparente redução recente (a partir de 3 de junho de 2020) no número de novas mortes registradas no Brasil, após 79 dias do registro da primeira morte, data em que o país acumulava 29.937 registros de mortes pela COVID-19.

Apesar do declínio identificado no registro de mortes diárias após 3 de junho, em 13 de junho o país já acumulava 42.720 mortes e ainda tinha por volta de 97% suscetíveis (http://epidemioufpel.org.br/uploads/downloads/19c528cc30e4e5a90d9f71e56f8808ec.pdf).





[1] Coreia do Sul é um dos seis países acompanhados por nós, mas não foi inserido nesta análise porque não teve aumento no número de mortes e obviamente não teve “pico” ou declínio para serem comparados.
[2] Manaus é a única cidade no Brasil que, após atingir o pico de mortes diárias, manteve este número menor do que o pico por cinco semanas consecutivas.
[3] Quando se fala que a pandemia iniciou nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro e que agora está havendo “interiorização” das mortes para municípios menores, deve-se salientar que a pandemia não “passou” por essas cidades e rumou para outros municípios; a pandemia se espalhou, mas continua presente nessas cidades (figura 2).
[4] R0 presume que 100% da população seja suscetível.
[5] Re não depende de que população toda seja suscetível.