terça-feira, 28 de abril de 2020

Por que o Brasil, mesmo depois de mais de quatro semanas de confinamento domiciliar, ainda apresenta aumento no número de mortes diárias registradas?


Rio de Janeiro, 27 de abril de 2020

No post de 18 de abril já havia indicação de que Itália, Espanha e Reino Unido já tinham atingido o pico de seus surtos de mortes diárias. Hoje, 27 de abril, essa indicação foi reforçada. Nesses três países, o pico (i.e., o momento em que não houve mais crescimento no número de mortes diárias) ocorreu aproximadamente três semanas após o início do confinamento domiciliar. As setas verdes no gráfico apontam o momento em que foi iniciado o confinamento domiciliar em cada país (Figura 1). Na Itália o confinamento iniciou na barra do 16º dia e o pico foi na barra do 37º dia (intervalo de 21 dias); na Espanha, 10º e 31º (21 dias); no Reino Unido, 19º e 37º (18 dias). Nos EUA não havia indicação clara de que o pico já tinha sido atingido. Parecia que poderia ter sido atingido na barra do 40º dia, mas houve a mudança no critério de registro de morte associada à COVID-19 em 15 de abril (47º dia), que deve ter aumentado o número de mortes registradas (ver explicação na nota de rodapé da Figura 1). Como as próximas barras na série dos EUA foram mais baixas do que a barra amarela do 46º dia (aparentemente anômala devido à mudança no critério de registro), então, parece que os EUA também atingiram o pico na barra do 40º dia, i.e., 18 dias após o início do confinamento domiciliar.

A Coreia do Sul vinha mantendo desde o 10º até o 57º dia o mesmo número de novas mortes diárias, variando de três a sete. De lá para cá, no 61º-63º dia de seu surto, caiu para menos de duas mortes. A Coreia desde o início vem testando amostras populacionais para detecção do SARS-CoV-2, identificando as pessoas com resultado positivo e isolando-as por duas ou três semanas. A Coreia em nenhum momento até o 63º dia desde a primeira morte confinou toda população em casa.





Figura 1. Número de mortes (eixo vertical) em escala logarítmica.

    = Fique em casa!



* Dia 1 (Dia em que houve a primeira morte registrada de COVID-19): Brasil, Março 17; Coreia do Sul, Fevereiro 20; Itália, Fevereiro 21; Espanha, Março 1; EUA, Fevereiro 29; Reino Unido, Março 5.

* O número diário de novas mortes é sujeito a variações aleatórias que dificultam observar claramente se a tendência é ascendente, estacionária ou descendente. Por isso, os gráficos neste post apresentam uma média de três dias para representar o número diário de novas mortes. Por exemplo, no 4º, 5º e 6º dia após a primeira morte por COVID-19 registrada no Brasil houve duas, cinco e sete novas mortes, respectivamente; a média diária então foi de 4,67 que equivale aproximadamente a 5 mortes nos dias 4-6. Dessa forma evitamos ser confundidos por oscilações aleatórias irrelevantes.


* O número limitado de testes para confirmação do diagnóstico da COVID-19, as diferenças no número de sub e sobre notificações de mortes por COVID-19 entre os países e em diferentes momentos em um mesmo país e outras dificuldades na atribuição da causa de morte, significa que o número de mortes registradas (e relatadas nos gráficos) pode não ser uma contagem acurada do verdadeiro número de mortes pela COVID-19. Por exemplo, os EUA relataram no dia 15 de abril uma mudança no critério de diagnóstico – a partir daquele dia, não haveria mais necessidade de confirmação de teste diagnóstico laboratorial (por exemplo, PCR) para classificar uma morte pela COVID-19, bastando apenas o diagnóstico clínico. Neste dia o número de novas mortes registradas pulou de 1541 no dia anterior (14 de abril) para 2408 e para 4928 no dia seguinte (16 de abril). Esses foram o 46º, 47º e 48º dias do surto naquele país (a barra amarela mais recente na série dos EUA deve ser mais saliente, pelo menos em parte, devido a esta mudança de critério de registro).




No Brasil, o confinamento iniciou na barra do 7º dia. De acordo com o padrão identificado nos outros países acompanhados aqui, o pico deveria ser atingido 18 a 21 dias depois, i.e., pelo menos na barra do 28º dia. No entanto, a barra do 31º dia foi mais alta do que a do 28º dia, indicando que, no Brasil, o pico não foi atingido três semanas após o início do confinamento domiciliar. As duas barras mais recentes, do 37º-39º e 40º-42º dia, demonstram que o número de mortes diárias continua crescendo, portanto, não há indicação ainda de que o pico já tenha sido atingido. Existe, portanto, uma incompatibilidade nos dados. Por um lado, com base no que aconteceu nos outros países, o Brasil já deveria ter atingido o pico de novas mortes diárias três semanas após o início do confinamento domiciliar. Além disso, teoricamente o confinamento domiciliar reduz imediatamente e drasticamente o contágio e essa redução no contágio deve reduzir o número de mortes de COVID-19 a partir da terceira semana seguinte. Neste caso, o pico deveria ter acontecido na barra do 28º dia (entre 13 e 15 de abril), quando houve 136 novas mortes registradas. Mas, na realidade, chegamos a quase 300 mortes diárias nos 40º-42º dias, sem sinal ainda de que atingimos o pico. O que pode explicar essa discrepância? 

Por que o Brasil está levando um tempo mais longo do que os outros países para atingir o pico?



Atraso na confirmação de mortes por COVID-19 no Brasil

Uma possibilidade é o atraso na confirmação de mortes por COVID-19 no Brasil, que pode ser maior do que nos outros países, pois há atraso nos resultados dos testes laboratoriais. Há um atraso grande no Brasil, reconhecido pelas autoridades e relatado pelos médicos. Por exemplo, pode ser que as mortes por COVID-19 registradas em um determinado dia reflitam na realidade mortes que ocorreram duas ou três semanas antes. Neste caso, pode ser que o pico de mortes diárias já tenha sido atingido, mas como muitas mortes passadas não foram ainda confirmadas, elas não contribuíram para a altura das barras passadas, mas ainda continuam a contribuir para a altura das barras atuais. Neste caso, o pico teria já de fato sido atingido, porém, por enquanto não está sendo possível detectar este fato pelos dados de registros de mortes. Esta explicação não parece suficiente, pois recentemente houve uma redução grande no atraso dos resultados dos testes em São Paulo, porém o número de mortes continuou a subir, mesmo depois que esses resultados atrasados foram incorporados aos registros.

Subnotificação de mortes por COVID-19

O número real de mortes por COVID-19 (mortes registradas + mortes não registradas) parece ser maior do que o número registrado, pois o número não registrado de mortes por COVID-19 parece ser grande. Este é um fenômeno mundial que atinge países menos e mais desenvolvidos. Uma indicação desse fenômeno foi a descoberta de que houve um excesso repentino na mortalidade por todas as causas nos locais mais afetados pela pandemia e este excesso foi maior do que as mortes registradas pela COVID-19 poderiam explicar. A taxa de mortalidade por todas as causas nas semanas de março e abril de 2020 foi mais alta do que nas semanas equivalentes entre 2015 e 2019, nos locais onde houve muitas mortes ligadas à COVID-19. Além disso, nesses locais o excesso de mortalidade nas semanas de 2020 foi maior do que as mortes registradas de COVID-19. Em 14 países desenvolvidos incluindo Itália, Espanha e Inglaterra & País de Gales, houve 122 mil mais mortes nas semanas recentes do que a média usual nesses países nas mesmas semanas dos anos anteriores (isto significa um aumento de 52%). Mas, além disso, foram 45 mil mais mortes do que o número de mortes registradas por COVID-19. Ou seja, deste excesso de 122 mil mortes, somente 77 mil foram registradas como sendo devidas à COVID-19; grande parte dessas 45 mil mortes devem ter sido mortes por COVID-19 não registradas. Algumas dessas mortes podem ser resultado de outras causas, pois o confinamento pode aumentar o risco de transtornos mentais e físicos que aumentam o risco de morrer. Além disso, as pessoas estão evitando ir aos hospitais por causa de outros problemas de saúde. Mas, provavelmente a maioria dessas mortes é consequência direta do vírus (https://www.ft.com/content/6bd88b7d-3386-4543-b2e9-0d5c6fac846c).

Em locais específicos onde o surto de COVID-19 foi mais intenso o problema da subnotificação é ainda mais agudo. Na região da Lombardia na Itália o excesso recente de mortes por qualquer causa foi de mais de 13 mil mortes, mas somente pouco mais de 4 mil mortes por COVID-19 foram registradas. Em vários países o excesso de mortalidade é muito maior do que o número de mortes registradas por COVID-19. Por exemplo, Inglaterra & País de Gales (47% mais mortes em excesso do que registros de morte por COVID-19), Suécia (40%) e Espanha (33%) (https://www.ft.com/content/6bd88b7d-3386-4543-b2e9-0d5c6fac846c).

O excesso de mortalidade foi tamanho que sobrecarregou os mecanismos de relato dos serviços de saúde, dificultando o registro de todas as mortes de forma fidedigna. Médicos ficam tão ocupados, apressados, preocupados em resolver os problemas dos atendimentos de tantos pacientes, que a primeira baixa organizacional é o preenchimento de formulários. Muitos pacientes não foram testados para confirmar a presença do SARS-CoV-2 laboratorialmente. Além disso, em vários países, mortes por COVID-19 que ocorreram em residências para idosos e em domicílios não foram registradas, pois muitas vezes essas pessoas não foram testadas laboratorialmente (https://www.ft.com/content/6bd88b7d-3386-4543-b2e9-0d5c6fac846c).

É difícil saber o quanto que as diferenças na subnotificação podem explicar as diferenças identificadas entre os países analisados neste post. Provavelmente houve modificações no nível de subnotificação com o decorrer do tempo durante a pandemia em cada país. É plausível que diferenças (e mudanças no tempo) em níveis de subnotificação sejam maiores entre países do que em um mesmo país. Como o foco das análises neste post é a mudança através do tempo dentro de cada país, a subnotificação não deve invalidar as análises e discussões relatadas aqui. Portanto, a subnotificação não deve ser uma razão que explique porque o Brasil está demorando mais do que o esperado para atingir o pico de mortes diárias (ou para perceber que já atingiu o pico).   

Surtos locais ou regionais em momentos diferentes no Brasil

Uma outra possibilidade é que a maioria das mortes registradas nas primeiras três semanas foi principalmente um reflexo dos surtos de São Paulo e Rio de Janeiro. Como o Brasil é um país com população maior, mais extenso geograficamente, mais desigual em termos socioeconômicos e educacionais e com unidades da federação possivelmente mais independentes do ponto de vista administrativo, do que os outros países (talvez com exceção dos EUA, que compartilham essas características com o Brasil), pode ser que novos surtos em outros locais começaram a influenciar o ritmo da pandemia no Brasil, de forma diferente do que foi o caso nas três primeiras semanas. Ou seja, pode ser que o Brasil venha a ter não um surto nacional, mas vários surtos locais ou regionais, cada um em um momento no tempo. Como se o Brasil pudesse ser entendido não apenas como um país, mas três ou quatro países, com surtos relativamente independentes, ou pelo menos, em momentos diferentes. Mas, esta explicação também não parece plausível, pois mesmo São Paulo, local onde o surto começou no Brasil, ainda não deu sinais de que atingiu o pico.

Adesão menor e/ou decrescente ao confinamento domiciliar

Uma outra explicação seria uma adesão menor e/ou decrescente ao confinamento domiciliar, com o passar dos dias e das semanas. Itália, Espanha, EUA e Reino Unido “levaram um susto” quando constataram o número grande e rapidamente crescente de novas mortes diárias e com as dificuldades enfrentadas pelos serviços de saúde. As autoridades naqueles países foram firmes e consistentes na recomendação e aplicação do confinamento domiciliar, quando resolveram adotá-lo. No Brasil, como o número de mortes e transtorno dos serviços de saúde não chegaram ainda ao ponto de assustar a população e nem algumas autoridades, o confinamento domiciliar pode não ter sido respeitado de forma tão ampla como nos outros países analisados aqui. Por exemplo, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, tem expressado, de forma consistente, desde o início desta pandemia, que ele não acha necessário e até mesmo não concorda com o confinamento domiciliar. Esta atitude da principal autoridade do país pode ter motivado muitas pessoas a não aderirem ao confinamento. Portanto, o confinamento domiciliar no Brasil pode ter sido, na prática, algo diferente do que foi nesses outros países. Esta explicação parece bem plausível, ainda mais se considerarmos os vários sistemas de vigilância que relatam um percentual alto de circulação de pessoas e veículos nas cidades, durante o período de confinamento.

Sazonalidade

Viroses costumam ocorrer mais frequentemente em determinados momentos no ano, de acordo com a estação. Outros coronavírus que infectam seres humanos e causam problemas respiratórios costumam ser sazonais – no hemisfério norte apresentam o pico de casos no inverno. Dos cinco países neste post que adotaram o confinamento domiciliar de toda a população apenas o Brasil não está no hemisfério norte. Pode ser que o ciclo de proliferação e contágio do SARS-CoV-2 obedeça regra similar de sazonalidade (isto ainda não é sabido) e, portanto, apresente momentos críticos em diferentes meses nos hemisférios norte e sul; o momento crítico pode estar cessando em abril no norte, mas não no sul. Se o SARS-CoV-2 de fato variar de acordo com a estação do ano, pode ser que o confinamento no Brasil tenha ocorrido em momento ascendente e nos países do norte em momento descendente deste vírus. Esta pode ser a razão porque o confinamento pode ter impedido o aumento no número de mortes nos países do norte, em abril, mas não no Brasil. Ainda assim, mesmo que não consiga impedir o aumento no número de mortes, o confinamento no Brasil pode estar evitando um aumento maior no número de mortes (i.e., poderia ser um aumento maior se não houvesse o confinamento). Independentemente da sazonalidade, se não há contato entre as pessoas, não tem como haver contágio.   

Outros fatores que podem influenciar diferenças entre os países

Todos os países tomaram outras atitudes para redução do contágio, tais como banimento de eventos públicos e fechamento de escolas, antes do confinamento de toda população em casa. Esses fatores variaram entre os países e influenciam também diferenças na velocidade do contágio.

Depois de 40 dias do registro da primeira morte o Brasil continua apresentando um crescimento no número de novas mortes diárias menor do que os outros países apresentaram nos primeiros 40 dias de seus surtos (barra do 40º-42º dia, que é a barra mais recente do Brasil): o Brasil apresentou 297 novas mortes, enquanto Itália, Espanha, EUA e Reino Unido apresentaram 792, 578, 1.900 e 744, respectivamente. No entanto é importante notar que o Brasil ainda está com números ascendentes enquanto os outros países aqui analisados já estavam no pico ou descendentes no 40º dia de seus surtos (Figura 2).




Figura 2. Número de mortes (eixo vertical) em escala linear. As barras da Coreia do Sul não aparecem, pois os números de mortes são muito pequenos. Outras explicações deste gráfico estão na figura 1.




Conclusão       

Com o confinamento domiciliar de toda população o objetivo era fazer com que o número de mortes diárias parasse de crescer e começasse a diminuir, a partir da terceira semana após o início do confinamento; três semanas é um tempo médio entre o início da infecção e o óbito nas pessoas que fazem os quadros mais graves da COVID-19. No entanto, o Brasil ainda está com números ascendentes enquanto os outros países aqui analisados já estavam no pico ou descendentes no 40º dia de seus surtos (Figura 2). E este fato é preocupante e um enigma que até agora não identifiquei nenhuma autoridade tentando explicar; isto é:

Por que o Brasil, mesmo depois de mais de quatro semanas de confinamento domiciliar, ainda apresenta aumento no número de mortes diárias registradas?

Depois de analisar várias explicações alternativas, concluo que provavelmente a resposta é a seguinte: o confinamento domiciliar foi adotado, de fato, apenas por uma quantidade insuficiente da população.


Paulo Nadanovsky, PhD.

Epidemiologista da Fiocruz e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.



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