sexta-feira, 24 de abril de 2020

A utilidade do teste para detecção de anticorpos do SARS-CoV-2


23 de abril de 2020

Há pelo menos três circunstâncias em que o teste para detecção de anticorpos de SARS-CoV-2 pode ser utilizado para ajudar a lidar com a pandemia da COVID-19. Essas três circunstâncias são as seguintes: durante o tratamento / manuseio clínico de pacientes em hospitais ou clínicas médicas; na vigilância epidemiológica para monitoramento da pandemia; para emitir certificado (ou “passaporte”) de imunidade. Discutiremos neste post a utilidade deste tipo de teste em cada uma dessas circunstâncias. O outro tipo de teste, aquele que detecta a presença do vírus, será considerado brevemente e apenas no manuseio clínico dos pacientes.

TRATAMENTO DE PACIENTES
Diagnóstico de pacientes em hospitais ou clínicas médicas para auxiliar no manuseio clínico
(Não é útil)

Para ajudar no manuseio clínico de pacientes com sinais e sintomas clínicos suspeitos da COVID-19, o teste indicado é o que busca detectar a presença do vírus naquele momento específico, pois pacientes infectados devem ser isolados dos outros pacientes para evitar o contágio e ser recrutados para participar de ensaios clínicos e receber tratamentos.

Nessa situação, o teste para detecção de anticorpos não é útil, pois se o resultado neste teste for negativo pode ser que o paciente esteja infectado, mas ainda não tenha dado tempo dele produzir os anticorpos; se for positivo, pode ser que ele já tenha produzido anticorpos, mas ainda não tenha havido tempo de ter se livrado do vírus e, portanto, ainda estar contagiando.

VIGILÂNCIA EPIDEMIOLÓGICA
Monitoramento do percentual da população com anticorpos para o SARS-CoV-2, da velocidade da expansão da epidemia ao longo do tempo e do percentual de pessoas que teve infecções assintomáticas
(É muito útil; imprescindível)

O objetivo do teste neste caso é o rastreamento de pessoas que já foram infectadas e produziram anticorpos contra o SARS-CoV-2. Esta vigilância epidemiológica constante é fundamental para nos ajudar a tomar decisões sobre a necessidade de aplicar medidas mais amplas e estritas de distanciamento físico, tais como fechamento de escolas e quarentena de toda a população, como também sobre as oportunidades de diminuir as medidas de distanciamento físico. Os inquéritos domiciliares sendo realizados no Brasil neste momento, utilizando este teste rápido sorológico, estão, a princípio, programados para ocorrer em quatro fases, com duas semanas de intervalo entre as fases. Dessa forma será possível estimar a velocidade do contágio do SARS-CoV-2 no país neste momento (EPICOVID19 -

Esses inquéritos serão úteis também para revelar algo muito importante, que é a quantidade de pessoas que foram infectadas, mas não perceberam, ou seja, foram assintomáticas. Além dos testes os pesquisadores entrevistarão os participantes e poderão indagar sobre sintomas recentes típicos da COVID-19. As pessoas que testarem positivo e relatarem ausência de sintomas recentes serão classificadas como casos de infecções assintomáticas. Isto é importante para investigar o papel de pessoas assintomáticas como disseminadoras desta pandemia. Esta investigação será possível, pois nas fases subsequentes à primeira fase, os pesquisadores aplicarão o teste e entrevistarão vizinhos dos participantes que foram incluídos na fase anterior.

Esses inquéritos epidemiológicos com testes rápidos sorológicos de detecção de anticorpos provavelmente serão o instrumento chave para ajudar-nos a lidar com esta pandemia, que pode durar até 2022 (e até ressurgir em 2025) (https://science.sciencemag.org/content/early/2020/04/14/science.abb5793/tab-pdf). Esses testes provavelmente atuarão como o velocímetro que indicará a velocidade do contágio, para nos ajudar a acelerar ou a pisar no freio, ao aplicarmos medidas para reduzir ou aumentar o distanciamento (confinamento) físico, tais como fechamento (ou abertura) de escolas e de comércio e confinamento (ou relaxamento) domiciliar de toda a população.

No médio/longo prazo, esses testes serão úteis para detectar quando estivermos nos aproximando do limiar de imunidade de rebanho que sinalizará o fim desta pandemia. Por exemplo, se o número básico de reprodução do SARS-CoV-2 for 3 (R0=3), quando a população atingir 67% de pessoas com anticorpos podemos presumir que a epidemia não se sustentará e logo será eliminada. 

CERTIFICADO (OU “PASSAPORTE”) DE IMUNIDADE
Identificação de pessoas na população que estão aptas a sair do confinamento domiciliar e agilizar o reinício das atividades econômicas e sociais
(Utilidade depende da prevalência de imunizados na população)

Vamos imaginar três cenários para entender o efeito deste tipo de teste na prática, com o objetivo de emitir (ou obter) certificado de imunidade. O teste rápido para detecção de anticorpos para o SARS-CoV-2 costuma ter alta especificidade, mas sensibilidade relativamente baixa. O teste que foi utilizado no inquérito domiciliar no Rio Grande do Sul e que está sendo utilizado nos inquéritos domiciliares em todos os estados no Brasil (com amostras de pessoas em 133 cidades sentinelas) tem especificidade de 99% (percentual de resultados negativos entre os sem anticorpos) e sensibilidade de 86% (percentual de resultados positivos entre com anticorpos).

Digamos (primeiro cenário) que em uma população de 10 mil pessoas haja, hipoteticamente, 100 (1%) com anticorpos para o SARS-CoV-2 (Figura 1). A árvore (fluxograma) demonstra claramente que neste cenário a quantidade de resultados verdadeiro-positivo (86) é menor do que a de resultados falso-positivo (99). Mesmo com uma especificidade muito boa (99%) um resultado positivo tem mais chance de ser falso do que verdadeiro. Isto significa que, para uma pessoa com um resultado positivo, a probabilidade de não ter anticorpos é maior do que a de ter anticorpos. Em posse de um “certificado de imunidade” como este, a pessoa não deve se sentir tranquilizada, pois mais provavelmente ela está suscetível do que imunizada.
Figura 1) O teste sorológico rápido para detecção de anticorpos para o SARS-CoV-2. Cenário 1: Prevalência de imunizados = 1%; Especificidade = 99%; Sensibilidade = 86%. Para cada 100 verdadeiros-positivo, há 115 falsos-positivo. Somente 46% dos positivos são verdadeiros.



Agora, em uma população com 10% ou 20% de pessoas com anticorpos (segundo e terceiro cenários), um resultado positivo neste teste demonstra grandes probabilidades da pessoa ter de fato anticorpos (Figuras 2 e 3). A quantidade de resultados verdadeiro-positivo é bem maior do que a de resultados falso-positivo; para cada 100 resultados verdadeiro-positivo há apenas 10 e 5 resultados falso-positivo, quando a prevalência é de 10% e 20%, respectivamente.



Figura 2) O teste sorológico rápido para detecção de anticorpos para o SARS-CoV-2. Cenário 2: Prevalência de imunizados = 10%; Especificidade = 99%; Sensibilidade = 86%. Para cada 100 verdadeiros-positivo, há 10 falsos-positivo. 90% dos positivos são verdadeiros.


Figura 3) O teste sorológico rápido para detecção de anticorpos para o SARS-CoV-2. Cenário 3: Prevalência de imunizados = 20%; Especificidade = 99%; Sensibilidade = 86%. Para cada 100 verdadeiros-positivo, há 5 falsos-positivo. 95% dos positivos são verdadeiros.



Prevalências de 1% ou menores são comuns neste momento na maioria das populações e de 10% ou mais, raras. Na região da Itália em que houve um grande número de mortes pela COVID-19 a prevalência de infectados não passa de 15%. A utilidade deste teste pode ser maior para subpopulações muito expostas ao vírus, tais como médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem, que estejam constantemente em contato próximo com pessoas infectadas. Pode também ser útil para pessoas que são “contatos” recentes de pessoas infectadas; seria como se essas pessoas pertencessem a populações com alta prevalência de imunizados (há relatos de que entre médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e trabalhadores em hospitais de uma forma geral, a prevalência de imunizados está ao redor de 20%).


Os números nos três cenários são baseados na população agregada e ignoram a história clínica que modificaria as probabilidades pré-teste. Dentro da população geral e de populações especiais, como profissionais de saúde, existem indivíduos com e sem histórico do que soa como COVID-19, incluindo aqueles sem histórico, atípico, leve, moderado e grave. Em cada um desses históricos existe uma probabilidade pré-teste diferente (isto é, uma prevalência de imunizados diferente nas figuras), que pode variar de 2 a 80%, por exemplo.



Resumo  

O teste sorológico rápido para detecção de anticorpos para o SARS-CoV-2 é essencial para o monitoramento: do percentual da população com anticorpos; da velocidade da expansão da epidemia ao longo do tempo; do percentual de pessoas que teve infecções assintomáticas. É inútil para o diagnóstico de pacientes em hospitais ou clínicas médicas com o objetivo de auxiliar no manuseio clínico. É inútil para a identificação de pessoas na população que estão aptas a sair do confinamento domiciliar e agilizar o reinício das atividades econômicas e sociais, quando a prevalência de imunizados é baixa (por volta de 1%); mas é útil quando a prevalência é mais alta, i.e., quando pelo menos 10% da população estão imunizadas. Este teste também é útil para pessoas que estão frequentemente expostas a pessoas infectadas ou que ficaram intimamente expostas a alguma pessoa infectada.

Portanto, o teste para detecção de anticorpos para o SARS-CoV-2 é:

Imprescindível para a vigilância epidemiológica;
- Inútil para manuseio clínico de pacientes;
- Inútil para certificado de imunidade se prevalência de imunizados for baixa;
- Útil para certificado de imunidade se prevalência de imunizados for alta (≥10%).

Aviso: Ainda não foi comprovado que os anticorpos para o SARS-CoV-2 conferem imunidade e se sim, por quanto tempo. Por isso, os valores de especificidade, sensibilidade e os cenários discutidos neste post podem não ter relevância, caso os anticorpos não confiram imunidade ou a confiram por período curto de tempo. Por enquanto, baseado em estudos com macacos e em evidência de outras viroses em humanos, presume-se que haja imunidade adquirida por pelo menos dois anos (https://science.sciencemag.org/content/early/2020/04/14/science.abb5793/tab-pdf).


Paulo Nadanovsky, PhD
Epidemiologista da FIOCRUZ e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Aviso: Sou epidemiologista, mas não especialista em epidemiologia de doenças infecciosas. Leciono métodos epidemiológicos no curso de doutorado e mestrado na Escola Nacional de Saúde Pública da FIOCRUZ, no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e no curso de graduação de medicina desta Universidade.
As opiniões neste artigo são minhas, não representam necessariamente as opiniões de outros profissionais nas minhas instituições muito menos o posicionamento oficial delas.


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