23 de abril de 2020
Há pelo menos três circunstâncias
em que o teste para detecção de anticorpos de SARS-CoV-2 pode ser utilizado para ajudar a lidar com a pandemia da COVID-19. Essas três circunstâncias são
as seguintes: durante o tratamento / manuseio clínico de pacientes em hospitais
ou clínicas médicas; na vigilância epidemiológica para monitoramento da
pandemia; para emitir certificado (ou “passaporte”) de imunidade. Discutiremos neste
post a utilidade deste tipo de teste em cada uma dessas circunstâncias. O outro
tipo de teste, aquele que detecta a presença do vírus, será considerado brevemente
e apenas no manuseio clínico dos pacientes.
TRATAMENTO DE PACIENTES
Diagnóstico de
pacientes em hospitais ou clínicas médicas para auxiliar no manuseio clínico
(Não é útil)
Para
ajudar no manuseio clínico de pacientes com sinais e sintomas clínicos
suspeitos da COVID-19, o teste indicado é o que busca detectar a presença do
vírus naquele momento específico, pois pacientes infectados devem ser isolados dos
outros pacientes para evitar o contágio e ser recrutados para participar de
ensaios clínicos e receber tratamentos.
Nessa situação,
o teste para detecção de anticorpos não é útil, pois se o resultado neste teste
for negativo pode ser que o paciente esteja infectado, mas ainda não tenha dado
tempo dele produzir os anticorpos; se for positivo, pode ser que ele já tenha
produzido anticorpos, mas ainda não tenha havido tempo de ter se livrado do vírus e, portanto, ainda estar contagiando.
VIGILÂNCIA
EPIDEMIOLÓGICA
Monitoramento do percentual
da população com anticorpos para o SARS-CoV-2, da velocidade da expansão da
epidemia ao longo do tempo e do percentual de pessoas que teve infecções
assintomáticas
(É muito útil;
imprescindível)
O
objetivo do teste neste caso é o rastreamento de pessoas
que já foram infectadas e produziram anticorpos contra o SARS-CoV-2. Esta
vigilância epidemiológica constante é fundamental para nos ajudar a tomar
decisões sobre a necessidade de aplicar medidas mais amplas e estritas de distanciamento
físico, tais como fechamento de escolas e quarentena de toda a população, como
também sobre as oportunidades de diminuir as medidas de distanciamento físico. Os
inquéritos domiciliares sendo realizados no Brasil neste momento, utilizando este
teste rápido sorológico, estão, a princípio, programados para ocorrer em quatro
fases, com duas semanas de intervalo entre as fases. Dessa forma será possível
estimar a velocidade do contágio do SARS-CoV-2 no país neste momento (EPICOVID19
-
Esses
inquéritos serão úteis também para revelar algo muito importante, que é a quantidade
de pessoas que foram infectadas, mas não perceberam, ou seja, foram
assintomáticas. Além dos testes os pesquisadores entrevistarão os participantes
e poderão indagar sobre sintomas recentes típicos da COVID-19. As pessoas que
testarem positivo e relatarem ausência de sintomas recentes serão classificadas
como casos de infecções assintomáticas. Isto é importante para investigar o
papel de pessoas assintomáticas como disseminadoras desta pandemia. Esta
investigação será possível, pois nas fases subsequentes à primeira fase, os
pesquisadores aplicarão o teste e entrevistarão vizinhos dos participantes que
foram incluídos na fase anterior.
Esses
inquéritos epidemiológicos com testes rápidos sorológicos de detecção de anticorpos
provavelmente serão o instrumento chave para ajudar-nos a lidar com esta
pandemia, que pode durar até 2022 (e até ressurgir em 2025) (https://science.sciencemag.org/content/early/2020/04/14/science.abb5793/tab-pdf).
Esses testes provavelmente atuarão como o velocímetro que indicará a
velocidade do contágio, para nos ajudar a acelerar ou a pisar no freio, ao
aplicarmos medidas para reduzir ou aumentar o distanciamento (confinamento)
físico, tais como fechamento (ou abertura) de escolas e de comércio e
confinamento (ou relaxamento) domiciliar de toda a população.
No médio/longo
prazo, esses testes serão úteis para detectar quando estivermos nos aproximando
do limiar de imunidade de rebanho que sinalizará o fim desta pandemia. Por
exemplo, se o número básico de reprodução do SARS-CoV-2 for 3 (R0=3), quando a
população atingir 67% de pessoas com anticorpos podemos presumir que a epidemia não se
sustentará e logo será eliminada.
CERTIFICADO (OU
“PASSAPORTE”) DE IMUNIDADE
Identificação de
pessoas na população que estão aptas a sair do confinamento domiciliar e
agilizar o reinício das atividades econômicas e sociais
(Utilidade depende da
prevalência de imunizados na população)
Vamos
imaginar três cenários para entender o efeito deste tipo de teste na prática,
com o objetivo de emitir (ou obter) certificado de imunidade. O teste rápido
para detecção de anticorpos para o SARS-CoV-2 costuma ter alta especificidade,
mas sensibilidade relativamente baixa. O teste que foi utilizado no inquérito
domiciliar no Rio Grande do Sul e que está sendo utilizado nos inquéritos
domiciliares em todos os estados no Brasil (com amostras de pessoas em 133
cidades sentinelas) tem especificidade de 99% (percentual de resultados
negativos entre os sem anticorpos) e sensibilidade de 86% (percentual de
resultados positivos entre com anticorpos).
Digamos
(primeiro cenário) que em uma população de 10 mil pessoas haja, hipoteticamente,
100 (1%) com anticorpos para o SARS-CoV-2 (Figura 1). A árvore (fluxograma) demonstra
claramente que neste cenário a quantidade de resultados verdadeiro-positivo
(86) é menor do que a de resultados falso-positivo (99). Mesmo com uma
especificidade muito boa (99%) um resultado positivo tem mais chance de ser
falso do que verdadeiro. Isto significa que, para uma pessoa com um resultado
positivo, a probabilidade de não ter anticorpos é maior do que a de ter anticorpos. Em posse de um “certificado
de imunidade” como este, a pessoa não deve se sentir tranquilizada, pois mais
provavelmente ela está suscetível do que imunizada.
Figura 1) O teste sorológico rápido para detecção de anticorpos para o SARS-CoV-2. Cenário 1: Prevalência de imunizados = 1%; Especificidade = 99%; Sensibilidade = 86%. Para cada 100 verdadeiros-positivo, há 115 falsos-positivo. Somente 46% dos positivos são verdadeiros.
Agora,
em uma população com 10% ou 20% de pessoas com anticorpos (segundo e terceiro
cenários), um resultado positivo neste teste demonstra grandes probabilidades da
pessoa ter de fato anticorpos (Figuras 2 e 3). A quantidade de resultados verdadeiro-positivo
é bem maior do que a de resultados falso-positivo; para cada 100 resultados verdadeiro-positivo
há apenas 10 e 5 resultados falso-positivo, quando a prevalência é de 10% e
20%, respectivamente.
Figura 2) O teste sorológico rápido para detecção de anticorpos para o SARS-CoV-2. Cenário 2: Prevalência de imunizados = 10%; Especificidade = 99%; Sensibilidade = 86%. Para cada 100 verdadeiros-positivo, há 10 falsos-positivo. 90% dos positivos são verdadeiros.
Figura 3) O teste sorológico rápido para detecção de anticorpos para o SARS-CoV-2. Cenário 3: Prevalência de imunizados = 20%; Especificidade = 99%; Sensibilidade = 86%. Para cada 100 verdadeiros-positivo, há 5 falsos-positivo. 95% dos positivos são verdadeiros.
Prevalências
de 1% ou menores são comuns neste momento na maioria das populações e de 10% ou
mais, raras. Na região da Itália em que houve um grande número de mortes pela
COVID-19 a prevalência de infectados não passa de 15%. A utilidade deste teste
pode ser maior para subpopulações muito expostas ao vírus, tais como médicos,
enfermeiros e técnicos de enfermagem, que estejam constantemente em contato
próximo com pessoas infectadas. Pode também ser útil para pessoas que são “contatos”
recentes de pessoas infectadas; seria como se essas pessoas pertencessem a
populações com alta prevalência de imunizados (há relatos de que entre médicos,
enfermeiros, técnicos de enfermagem e trabalhadores em hospitais de uma forma
geral, a prevalência de imunizados está ao redor de 20%).
Os
números nos três cenários são baseados na população agregada e ignoram a
história clínica que modificaria as probabilidades pré-teste. Dentro da
população geral e de populações especiais, como profissionais de saúde, existem
indivíduos com e sem histórico do que soa como COVID-19, incluindo aqueles sem
histórico, atípico, leve, moderado e grave. Em cada um desses históricos existe uma
probabilidade pré-teste diferente (isto é, uma prevalência de imunizados diferente
nas figuras), que pode variar de 2 a 80%, por exemplo.
Resumo
O
teste sorológico rápido para detecção de anticorpos para o SARS-CoV-2 é essencial
para o monitoramento: do percentual da população com anticorpos; da
velocidade da expansão da epidemia ao longo do tempo; do percentual de pessoas
que teve infecções assintomáticas. É inútil para o diagnóstico de
pacientes em hospitais ou clínicas médicas com o objetivo de auxiliar no
manuseio clínico. É inútil para a identificação de pessoas na população
que estão aptas a sair do confinamento domiciliar e agilizar o reinício das
atividades econômicas e sociais, quando a prevalência de imunizados é baixa
(por volta de 1%); mas é útil quando a prevalência é mais alta, i.e.,
quando pelo menos 10% da população estão imunizadas. Este teste também é útil
para pessoas que estão frequentemente expostas a pessoas infectadas ou que
ficaram intimamente expostas a alguma pessoa infectada.
Portanto,
o teste para detecção de anticorpos para o SARS-CoV-2 é:
- Imprescindível para a
vigilância epidemiológica;
- Inútil para manuseio
clínico de pacientes;
- Inútil para
certificado de imunidade se prevalência de imunizados for baixa;
- Útil para certificado
de imunidade se prevalência de imunizados for alta (≥10%).
Aviso: Ainda não foi comprovado que os anticorpos para o SARS-CoV-2
conferem imunidade e se sim, por quanto tempo. Por isso, os valores de
especificidade, sensibilidade e os cenários discutidos neste post podem não ter
relevância, caso os anticorpos não confiram imunidade ou a confiram por período
curto de tempo. Por enquanto, baseado em estudos com macacos e em evidência de
outras viroses em humanos, presume-se que haja imunidade adquirida por pelo
menos dois anos (https://science.sciencemag.org/content/early/2020/04/14/science.abb5793/tab-pdf).
Paulo Nadanovsky, PhD
Epidemiologista da
FIOCRUZ e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Aviso: Sou
epidemiologista, mas não especialista em epidemiologia de doenças infecciosas.
Leciono métodos epidemiológicos no curso de doutorado e mestrado na Escola
Nacional de Saúde Pública da FIOCRUZ, no Instituto de Medicina Social da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e no curso de graduação de medicina
desta Universidade.
As opiniões neste
artigo são minhas, não representam necessariamente as opiniões de outros
profissionais nas minhas instituições muito menos o posicionamento oficial
delas.
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