No post de 27 de abril (https://nadanovsky.blogspot.com/2020/04/por-que-o-brasil-mesmo-depois-de-mais.html) constatamos que mesmo depois de mais
de quatro semanas de confinamento domiciliar o Brasil ainda apresentava um
aumento no número de mortes diárias registradas. Depois de analisar várias
explicações alternativas concluí que a mais provável era a seguinte: o confinamento
domiciliar foi adotado, de fato, apenas por uma quantidade insuficiente da
população.
No post de hoje, 10 dias depois, as
barras do 43º-45º, 46º-48º e 49º-51º dia (aproximadamente um período de 10 dias
entre o final de abril e o início de maio de 2020) demonstraram que, pela
primeira vez desde o início da pandemia no Brasil, o número de mortes diárias permaneceu estabilizado, i.e., parou de crescer
(Figuras 1 e 2). No entanto, a barra do 52º-54º dia mostrou um crescimento dramático
para 659 mortes diárias registradas.
A Itália e a Espanha, desde que pararam
de apresentar aumento no número de mortes diárias (no 37º-39º e 31º-33º dia,
respectivamente), vêm apresentando redução consistente nas mortes diárias, pelo
menos até este momento (no 76º-78º e 64º-66º dia, respectivamente). EUA e Reino
Unido pararam de apresentar aumento (no 46º-48º e 37º-39º dia, respectivamente),
mas ainda não mostraram redução consistente no número de mortes diárias
registradas até este momento (no 67º-69º e 61º-63º dia, respectivamente). A Itália
e Espanha chegaram a registrar 872 e 915 mortes diárias, respectivamente (30 a
40 dias após o registro da primeira morte), e mais recentemente, por volta de
um mês depois, apresentaram 281 e 293 (Itália nas duas barras mais recentes) e 201
e 214 (Espanha nas duas barras mais recentes) mortes diárias. Os EUA atingiram
2.959 mortes diárias registradas na barra do 46º-48º dia e os dados mais recentes,
por volta de 20 dias depois, ainda apresentaram 1.559 e 1.916 mortes diárias; isto
indica algum sinal de redução, porém ainda sem a consistência e o tamanho apresentados
por Itália e Espanha. O Reino Unido atingiu 926 mortes diárias registradas na
barra do 37º-39º dia e por volta de 20 dias depois ainda apresentou 678 e 432
mortes diárias; assim como os EUA, é um sinal de redução, mas ainda não tão grande
e consistente quanto na Itália e Espanha.
A Coreia do Sul vinha mantendo desde
o 10º até o 75º dia o mesmo número de novas mortes diárias, variando de três a
sete. De lá para cá, no 76º-78º dia de seu surto, caiu para menos de duas
mortes. A Coreia desde o início vem testando amostras populacionais para
detecção do SARS-CoV-2, identificando as pessoas com resultado positivo e
isolando-as por duas ou três semanas. A Coreia em nenhum momento até o 78º dia
desde a primeira morte confinou toda população em casa.
Figura 1. Número de mortes (eixo vertical) em escala
logarítmica.
* Dia 1 (Dia em que houve a primeira morte registrada de
COVID-19): Brasil, Março 17; Coreia do Sul, Fevereiro 20; Itália, Fevereiro 21;
Espanha, Março 1; EUA, Fevereiro 29; Reino Unido, Março 5.
* O número diário de novas mortes é sujeito a variações
aleatórias que dificultam observar claramente se a tendência é ascendente,
estacionária ou descendente. Por isso, os gráficos neste post apresentam uma
média de três dias para representar o número diário de novas mortes. Por
exemplo, no 31º, 32º e 33º dia após a primeira morte por COVID-19 registrada na
Coreia do Sul houve três, uma e nove novas mortes, respectivamente; a média
diária então foi de 4,33 que equivale aproximadamente a quatro mortes nos dias 31-33
(D31-33). Dessa forma evitamos ser confundidos por oscilações aleatórias
irrelevantes.
* O número limitado de testes para confirmação do diagnóstico
da COVID-19, as diferenças no número de sub e sobre notificações de mortes por
COVID-19 entre os países e em diferentes momentos em um mesmo país e outras
dificuldades na atribuição da causa de morte, significa que o número de mortes
registradas (e relatadas nos gráficos) pode não ser uma contagem acurada do
verdadeiro número de mortes pela COVID-19. Por exemplo, os EUA relataram no dia
15 de abril uma mudança no critério de diagnóstico – a partir daquele dia, não haveria
mais necessidade de confirmação de teste diagnóstico laboratorial (por exemplo,
PCR) para classificar uma morte pela COVID-19, bastando apenas o diagnóstico
clínico. Neste dia o número de novas mortes registradas pulou de 1541 no dia
anterior (14 de abril) para 2408 e para 4928 no dia seguinte (16 de abril).
Esses foram o 46º, 47º e 48º dias do surto naquele país (a barra verde na série
dos EUA deve ser mais saliente, pelo menos em parte, devido a esta mudança de
critério de registro).
Figura 2. Número de mortes (eixo vertical) em escala linear.
As barras da Coreia do Sul não aparecem, pois os números de mortes são muito
pequenos. Outras explicações deste gráfico estão na figura 1.
Interpretação dos dados
Uma das hipóteses que consideramos no
post de 27 de abril foi que no Brasil as mortes por COVID-19 registradas em um
determinado dia podem refletir na realidade mortes que ocorreram duas ou três
semanas antes. Neste caso, pode ser que o pico de mortes diárias já tenha sido
atingido, mas como muitas mortes passadas não foram ainda confirmadas, elas não
contribuíram para a altura das barras passadas, mas ainda continuam a
contribuir para a altura das barras atuais. Neste caso, o pico teria já de fato
sido atingido, porém, por enquanto não está sendo possível detectar este fato
pelos dados de registros de mortes. Alternativamente, este platô identificado
entre 27 de abril e 5 de maio pode ter escondido mortes que estavam se
acumulando e foram registradas tardiamente (dias depois), processo que continua
similar e persistente, dissipando na barra mais recente (52-54º dia, i.e., 7 a
9 de maio) a impressão de que o Brasil já poderia estar cessando o aumento no
número de mortes diárias.
Uma outra hipótese que consideramos
no post de 27 de abril foi que o Brasil deve apresentar surtos locais ou
regionais em momentos diferentes. Se isto de fato estiver acontecendo, ou vier a
acontecer, e os surtos fora de São Paulo e Rio se tornarem preponderantes (por
exemplo, Ceará, Pernambuco, Amazonas e Pará parecem estar neste caminho), o
Brasil seguiria um caminho similar aos EUA e Reino Unido; i.e., apresentando
dificuldade para reduzir muito e consistentemente o número de mortes diárias
depois de atingir o pico nesta primeira onda da pandemia. É possível que por
serem países mais populosos e mais diversos geográfica e culturalmente do que
Itália e Espanha, estejam enfrentando surtos locais ou regionais em momentos
diferentes, mais do que Itália e Espanha enfrentaram. Por exemplo, Nova York já
estava reduzindo o número de mortes diárias enquanto outros estados estavam aumentando.
Por outro lado, caso o Brasil consiga suprimir a pandemia em outros estados
(por exemplo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul parecem estar tendo sucesso em
suprimir a pandemia até este momento), podemos esperar que, após os surtos em
São Paulo e no Rio, haja um desenrolar mais similar ao verificado na Itália e
Espanha, com redução grande e consistente no número de mortes diárias no país.
A heterogeneidade dentro de estados e
cidades como Rio e São Paulo pode levar a ainda mais aumentos no número de mortes
diárias quando a infecção se alastrar por bairros e municípios ainda pouco
afetados. Estados como Ceará e Pernambuco podem ainda apresentar aumento no
número de mortes tomando o lugar de São Paulo e Rio como os maiores focos da
pandemia no Brasil. O estado de São Paulo, desde 23 de abril até hoje, não tem mais
apresentado um aumento consistente no número de registros de mortes diárias.
Isso pode indicar que o grande aumento observado no Brasil desde 6 de maio deve
ser devido ao aumento em outros estados, com surtos posteriores ao de São
Paulo. O estado do Rio de Janeiro, por exemplo, apresentou um aumento grande a
partir de 6 de maio, com 58, 82, 189 e 109 novas mortes diárias em 5, 6, 7 e 8
de maio.
Implicações
Não é possível prever o caminho que o
Brasil trilhará, ainda mais diante de tanto titubeio, inconsistência, apatia e
descoordenação das autoridades federal e locais. As únicas alternativas
disponíveis no momento para tentar evitar a continuação no aumento no número de
mortes (e os casos graves da doença e todo sofrimento que os acompanham) é o
confinamento da população toda e o rastreamento das pessoas infectadas e seus
contatos (direcionado a locais onde há mais pessoas infectadas e
prioritariamente em comunidades pobres), com fornecimento pelo estado de locais
para quarentena e ajuda financeira para as pessoas infectadas que não tenham
como fazer a quarentena na própria residência. Infelizmente, pode ser
necessário que o estado recorra ao confinamento forçado (ao invés do confinamento
recomendado), pois até agora tudo indica que a população não tenha se confinado
suficientemente. A quantidade de pessoas aproveitando a orla das praias, os
parques, as praças, os bares, os campos de futebol e vários outros locais de
lazer, dão indicação clara de que o confinamento pode ser bem mais efetivo, mesmo
descontando as pessoas que precisam trabalhar fora de casa. Tínhamos esperança de que não precisaríamos
recorrer ao confinamento forçado (https://nadanovsky.blogspot.com/2020/03/a-tragedia-dos-bens-comuns-e-pandemia.html), mas neste momento não há outra
alternativa humanista, já que ainda não houve a mobilização necessária do governo,
empresários e autoridades sanitárias para investir na produção de testes e implementação
de estratégias de rastreamento de pessoas infectadas e seus contatos.
Paulo Nadanovsky, PhD.
Epidemiologista da Fiocruz e da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro.
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