Muitas
pessoas questionam se está errado comparar o número de mortes pela COVID-19
entre países sem considerar o tamanho da população em cada país. A impressão
que muitos têm é que um país com população maior naturalmente terá mais mortes,
por isso seria necessário comparar a taxa de mortalidade (por exemplo, número
de mortes por milhão de habitantes) ao invés do número absoluto de mortes.
Embora
esta seja uma impressão compreensível (intuitiva), ela não está correta. Não é
necessário considerar o tamanho da população para comparar o número de mortes.
Na verdade, comparar taxa de mortalidade pode ser pior do que comparar número
de mortes, pois confunde o entendimento do fenômeno (o fenômeno que está se
tentando entender é a velocidade de progressão da doença na população).
A
chave para entender o raciocínio é a seguinte: o risco de morrer por uma doença
infecciosa é determinado pelo número básico de reprodução da infecção (R0),
i.e., o número médio de pessoas que é infectado por cada pessoa infectada em
uma população em que todas as pessoas são suscetíveis. O R0 pode ser
influenciado por várias características da população, mas não necessariamente
pelo seu tamanho (o R0 frequentemente é menor em países com
populações maiores e vice-versa).
A
lógica do raciocínio é análogo aos estudos em genética, de ancestrais e
descendentes. Cada surto de infecção tem uma cadeia de ancestrais e
descendentes que vai se desencadeando, dentro de populações, independentemente
do tamanho populacional, mas totalmente dependente do R0. Por
exemplo, R0=3 significa o ancestral 1 infectando três descendentes
(em 15 dias, no caso do SARS-CoV-2), passados mais 15 dias cada um desses três
descendentes infectando nove descendentes e assim sucessivamente.
A
China, com mais de um bilhão de habitantes, produziu por volta de 4,5 mil
mortes pela COVID-19, enquanto o Brasil, com 212 milhões, produziu até este
momento mais de 16 mil. Obviamente, se a epidemia se alastrasse de forma
descontrolada até que toda a população de cada país fosse infectada (ou uma
proporção elevada), o número cumulativo de mortes seria maior nos países mais
populosos. Por exemplo, se a letalidade for de 1%, um país com 1 bilhão de
habitantes, todos infectados, terá 10 milhões de mortes acumuladas; um país com
100 milhões de habitantes, todos infectados, terá 1 milhão de mortes
acumuladas. Não seria nem possível um país com 500 mil habitantes ter o número
de mortes acumuladas desses dois primeiros países. Mas o teto populacional de
suscetíveis está longe de acontecer nesta pandemia. Neste momento, em que a
grande maioria das pessoas nos países é suscetível e nenhum país já se aproximou
da exaustão (do teto) no número de pessoas que ainda pode ser infectado e
morrer, o tamanho populacional é irrelevante para o risco de ser infectado.
Outra
forma de raciocinar que ajuda a clarear a questão é a seguinte. O fator de
risco (ou exposição de interesse) no caso da COVID-19 não está “no ambiente”.
Ele está nos indivíduos infectados. A poluição do ar, a dieta ultra processada
e a renda per capita são exposições ambientais às quais toda a população está
exposta. Nesses casos, não faz sentido comparar o número de pessoas em cada
país com doenças causadas por essas exposições, pois obviamente, os fatores de
risco (as exposições) estão afetando uma quantidade maior de pessoas em países
maiores e vice-versa. Isso não acontece com a COVID-19. Independentemente do
tamanho do país, seja ele a China com mais de um bilhão de pessoas, ou o Brasil
com 212 milhões, a exposição (o fator de risco), i.e., o SARS-CoV-2, não está
sendo exposto à população toda “no ambiente”. Somente quem encontra um
indivíduo infectado está exposto. Pode-se mesmo indagar se a probabilidade de
uma pessoa se infectar é maior em um país com uma população grande ou pequena.
Possivelmente, em um país com população pequena a chance de uma pessoa encontrar
um indivíduo infectado seja maior do que em um país com população grande (não
acho que seja, mas somente para argumentar que não há nada a priori que
justifique a obrigatoriedade de comparar países usando taxas ao invés de número
de mortes).
Por
que comparar taxa de mortalidade pode ser pior do que comparar número de mortes,
quando o objetivo é comparar a velocidade de propagação da doença na população?
Porque ao utilizar a taxa fica a impressão de que a velocidade de propagação da
doença na população está diretamente relacionada ao tamanho populacional, o que
não é verdade e desvia a atenção dos fatores importantes. Por outro lado, se o
objetivo for quantificar a importância relativa da COVID-19 em relação a outras
causas de morte na população, ou o impacto da doença na sociedade (por exemplo,
a sobrecarga dos serviços de saúde), aí sim é necessário comparar taxa de
mortalidade ao invés de número de mortes. Como, em momento de pandemia (ou
seja, quando a quantidade de pessoas com a doença está aumentando rapidamente),
não é possível saber qual será a extensão da doença na população e o interesse
principal ainda é descobrir a velocidade de propagação, a taxa de mortalidade
oferece informação obscura; ela retira o foco da velocidade de propagação (que
é o mais importante naquele momento) e desvia a atenção para a importância
relativa da doença como causa de morte (ainda que ajude a apontar o quanto a
população deve estar sendo impactada). Como não se sabe qual será a extensão da
doença, não é relevante ainda avaliar a sua importância relativa como causa de
morte e o seu impacto na população, pois tudo isso pode mudar radicalmente em
um período curto de tempo. Quando o número de novos doentes na população
estabilizar e descobrirmos como será a dinâmica desta doença infecciosa nas
populações humanas (Será suprimida? Será sazonal? Haverá imunidade adquirida
duradoura? Etc.), passará a ser mais relevante prestarmos atenção à taxa de
mortalidade do que ao número de mortes.
Paulo
Nadanovsky, PhD.
Epidemiologista
da Fiocruz e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Obrigada, muito esclarecedor. Pontos que seriam fundamentais que a mídia abordasse. Motivaram uma maior aderência ao isolamento social e medidas necessárias para o controle da pandemia!
ResponderExcluir*Motivariam
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