segunda-feira, 18 de maio de 2020

Está errado comparar o número de mortes pela COVID-19 entre países sem considerar o tamanho da população em cada país? Não.



Muitas pessoas questionam se está errado comparar o número de mortes pela COVID-19 entre países sem considerar o tamanho da população em cada país. A impressão que muitos têm é que um país com população maior naturalmente terá mais mortes, por isso seria necessário comparar a taxa de mortalidade (por exemplo, número de mortes por milhão de habitantes) ao invés do número absoluto de mortes.

Embora esta seja uma impressão compreensível (intuitiva), ela não está correta. Não é necessário considerar o tamanho da população para comparar o número de mortes. Na verdade, comparar taxa de mortalidade pode ser pior do que comparar número de mortes, pois confunde o entendimento do fenômeno (o fenômeno que está se tentando entender é a velocidade de progressão da doença na população).

A chave para entender o raciocínio é a seguinte: o risco de morrer por uma doença infecciosa é determinado pelo número básico de reprodução da infecção (R0), i.e., o número médio de pessoas que é infectado por cada pessoa infectada em uma população em que todas as pessoas são suscetíveis. O R0 pode ser influenciado por várias características da população, mas não necessariamente pelo seu tamanho (o R0 frequentemente é menor em países com populações maiores e vice-versa).

A lógica do raciocínio é análogo aos estudos em genética, de ancestrais e descendentes. Cada surto de infecção tem uma cadeia de ancestrais e descendentes que vai se desencadeando, dentro de populações, independentemente do tamanho populacional, mas totalmente dependente do R0. Por exemplo, R0=3 significa o ancestral 1 infectando três descendentes (em 15 dias, no caso do SARS-CoV-2), passados mais 15 dias cada um desses três descendentes infectando nove descendentes e assim sucessivamente.

A China, com mais de um bilhão de habitantes, produziu por volta de 4,5 mil mortes pela COVID-19, enquanto o Brasil, com 212 milhões, produziu até este momento mais de 16 mil. Obviamente, se a epidemia se alastrasse de forma descontrolada até que toda a população de cada país fosse infectada (ou uma proporção elevada), o número cumulativo de mortes seria maior nos países mais populosos. Por exemplo, se a letalidade for de 1%, um país com 1 bilhão de habitantes, todos infectados, terá 10 milhões de mortes acumuladas; um país com 100 milhões de habitantes, todos infectados, terá 1 milhão de mortes acumuladas. Não seria nem possível um país com 500 mil habitantes ter o número de mortes acumuladas desses dois primeiros países. Mas o teto populacional de suscetíveis está longe de acontecer nesta pandemia. Neste momento, em que a grande maioria das pessoas nos países é suscetível e nenhum país já se aproximou da exaustão (do teto) no número de pessoas que ainda pode ser infectado e morrer, o tamanho populacional é irrelevante para o risco de ser infectado.

Outra forma de raciocinar que ajuda a clarear a questão é a seguinte. O fator de risco (ou exposição de interesse) no caso da COVID-19 não está “no ambiente”. Ele está nos indivíduos infectados. A poluição do ar, a dieta ultra processada e a renda per capita são exposições ambientais às quais toda a população está exposta. Nesses casos, não faz sentido comparar o número de pessoas em cada país com doenças causadas por essas exposições, pois obviamente, os fatores de risco (as exposições) estão afetando uma quantidade maior de pessoas em países maiores e vice-versa. Isso não acontece com a COVID-19. Independentemente do tamanho do país, seja ele a China com mais de um bilhão de pessoas, ou o Brasil com 212 milhões, a exposição (o fator de risco), i.e., o SARS-CoV-2, não está sendo exposto à população toda “no ambiente”. Somente quem encontra um indivíduo infectado está exposto. Pode-se mesmo indagar se a probabilidade de uma pessoa se infectar é maior em um país com uma população grande ou pequena. Possivelmente, em um país com população pequena a chance de uma pessoa encontrar um indivíduo infectado seja maior do que em um país com população grande (não acho que seja, mas somente para argumentar que não há nada a priori que justifique a obrigatoriedade de comparar países usando taxas ao invés de número de mortes).   

Por que comparar taxa de mortalidade pode ser pior do que comparar número de mortes, quando o objetivo é comparar a velocidade de propagação da doença na população? Porque ao utilizar a taxa fica a impressão de que a velocidade de propagação da doença na população está diretamente relacionada ao tamanho populacional, o que não é verdade e desvia a atenção dos fatores importantes. Por outro lado, se o objetivo for quantificar a importância relativa da COVID-19 em relação a outras causas de morte na população, ou o impacto da doença na sociedade (por exemplo, a sobrecarga dos serviços de saúde), aí sim é necessário comparar taxa de mortalidade ao invés de número de mortes. Como, em momento de pandemia (ou seja, quando a quantidade de pessoas com a doença está aumentando rapidamente), não é possível saber qual será a extensão da doença na população e o interesse principal ainda é descobrir a velocidade de propagação, a taxa de mortalidade oferece informação obscura; ela retira o foco da velocidade de propagação (que é o mais importante naquele momento) e desvia a atenção para a importância relativa da doença como causa de morte (ainda que ajude a apontar o quanto a população deve estar sendo impactada). Como não se sabe qual será a extensão da doença, não é relevante ainda avaliar a sua importância relativa como causa de morte e o seu impacto na população, pois tudo isso pode mudar radicalmente em um período curto de tempo. Quando o número de novos doentes na população estabilizar e descobrirmos como será a dinâmica desta doença infecciosa nas populações humanas (Será suprimida? Será sazonal? Haverá imunidade adquirida duradoura? Etc.), passará a ser mais relevante prestarmos atenção à taxa de mortalidade do que ao número de mortes.  


Paulo Nadanovsky, PhD.
Epidemiologista da Fiocruz e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

2 comentários:

  1. Obrigada, muito esclarecedor. Pontos que seriam fundamentais que a mídia abordasse. Motivaram uma maior aderência ao isolamento social e medidas necessárias para o controle da pandemia!

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