domingo, 31 de maio de 2020

Comparação do risco de morrer pela COVID-19 com o risco de morrer por outras causas no Brasil



          Ainda não se sabe se a COVID-19 será erradicada, se haverá vacina ou qual será a efetividade dela, se será uma virose sazonal, etc. Existe a possibilidade dela se estabilizar como mais uma doença dentre outras doenças infecciosas para as quais não há vacina, como por exemplo AIDS, que entre 2008 e 2018 apresentou uma taxa de mortalidade de 4 a 6 por 100 mil habitantes no Brasil (http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2019/boletim-epidemiologico-de-hivaids-2019).

Uma vez que a quantidade de mortes pela COVID-19 se estabilize (i.e., na hipótese de não ser erradicada ou bastante reduzida pela vacina), passa a ser importante quantificar o impacto relativo desta doença em comparação com outras causas de morte. Na data de hoje (31 de maio de 2020) este momento ainda não chegou no Brasil. De qualquer forma, a seguir faremos uma comparação provisória, tomando como parâmetro o risco de morrer por diferentes causas e por COVID-19 em abril e maio de 2020 no Brasil.

O excesso de mortalidade e a subnotificação de mortes pela COVID-19

          Antes de fazer esta comparação é necessário considerar a possibilidade de subnotificação de mortes pela COVID-19. Há relatos de que muitas pessoas que morreram pela COVID-19 não tiveram confirmação da infecção pelo SARS-CoV-2; parte dessas mortes não foi então registrada como tendo sido causada pela COVID-19[1]. Por isso, há quem defenda que o excesso de mortalidade durante os meses da pandemia seja a melhor forma de quantificar a real mortalidade causada pela COVID-19 (https://www.ft.com/content/a26fbf7e-48f8-11ea-aeb3-955839e06441).

          No estado de São Paulo o número de mortes por qualquer causa (mortalidade total) registrado nos meses de abril dos anos 2015 a 2019 variou de 24.009 a 25.543, com uma média de 24.236. Em abril de 2020, a mortalidade total foi de 27.728, revelando um excesso de mortalidade de 3.492 em abril de 2020 comparado à média de abril nos cinco anos anteriores (https://transparencia.registrocivil.org.br/registros - consultado em 13 de maio de 2020). O número de mortes confirmadas pela COVID-19 no mês de abril de 2020 pelo portal de estatísticas do estado de São Paulo da Fundação Seade foi de 2.239 (https://www.seade.gov.br/coronavirus/ - consultado em 13 de maio de 2020).[2]

             Esses dados revelam algumas coisas importantes. Primeiro, um excesso de mortalidade anormal e expressivo em abril de 2020, de 3.492 mortes. Este excesso de mortes deve ser em parte devido às mortes causadas diretamente pela COVID-19 e indiretamente por outros problemas de saúde que podem ter se agravado durante o mês de abril de 2020, até como consequência da COVID-19. Por exemplo, uma pessoa que tenha sofrido uma complicação cardiovascular e não teve acesso ao tratamento necessário (ou não foi ao hospital), pois o sistema de saúde estava priorizando o atendimento dos doentes com a COVID-19. Por si só este dado de excesso de mortalidade tem valor, pois expressa o impacto mais genérico da COVID-19 na mortalidade, já que há mortes por outras causas que não teriam acontecido não fosse pela pandemia de COVID-19. Portanto, há mortes que são causadas diretamente pela COVID-19 e outras que são causadas indiretamente por ela; o excesso de mortalidade é um indicador que engloba tanto as primeiras quanto as últimas.

          Em segundo lugar esses dados permitem fazer uma estimativa, ainda que imperfeita, da subestimação no número de mortes causadas diretamente pela COVID-19. Usando um raciocínio superficial rápido nós podemos calcular a diferença entre o excesso de 3.492 mortes e o número de mortes confirmadas pela COVID-19, que foi de 2.239, concluindo que houve uma subnotificação de 1.253 mortes pela COVID-19.

No entanto, não podemos concluir que esta diferença represente de fato a subnotificação de mortes pela COVID-19.  Para fazer uma estimativa válida desta subestimação seria necessário conhecer o excesso e redução no número de mortes por todas as causas de morte que podem ter se alterado em consequência da COVID-19 e das medidas para lidar com ela, tais como o confinamento domiciliar, o fechamento de escolas, comércio e serviços (alerta feito a mim pela Ana Paula Pires dos Santos). Além do aumento de mortes por outras causas que pode ocorrer como consequência indireta da COVID-19, deve ter havido também redução de mortes por outras causas em consequência das medidas para lidar com a COVID-19: um cuidado maior com a higiene e o fechamento de escolas reduzem outras doenças infecciosas, não somente a COVID-19; adiar tratamentos eletivos reduz morbidade e mortalidade por tratamentos desnecessários e danosos; reduzir mobilidade social evita mortes por batida no trânsito e homicídio.[3]

A subnotificação então pode ser maior ou menor do que a diferença entre o excesso de mortalidade e o número de mortes confirmadas pela COVID-19. Por exemplo, em casos extremos, tais como a África do Sul, onde foi encontrada uma diferença negativa (https://www.ft.com/content/a26fbf7e-48f8-11ea-aeb3-955839e06441), ou seja, durante a pandemia da COVID-19 a mortalidade total diminuiu ao invés de aumentar (talvez pela redução nas mortes por causas externas em consequência das medidas de restrição de mobilidade e confinamento), não significa que não tenha havido subnotificação de mortes pela COVID-19. Lá, pode ser que a redução nas mortes pelas causas externas tenha sido tão grande que compensou tanto as mortes confirmadas como não confirmadas pela COVID-19.

Refinando a estimativa de subnotificação de mortes pela COVID-19 no Brasil

Vamos retornar ao exemplo de São Paulo para ilustrar nosso raciocínio na tentativa de chegar mais perto da estimativa correta de subnotificação de mortes pela COVID-19 no Brasil.[4] Em São Paulo em 2019 morreram 5.433 pessoas no trânsito, o que equivale a uma média de 453 por mês (https://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/numero-de-fatalidades-de-transito-em-2019-registra-menor-indice-desde-2015-em-sp/). Presumindo que tenha havido uma redução de 40% nessas mortes em abril de 2020 (devido à redução na mobilidade), teriam ocorrido 181 mortes a menos no trânsito (https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/04/22/numero-de-mortos-em-acidentes-de-transito-em-sp-cai-313-durante-a-quarentena.htm). Além disso, foram 2.906 vítimas de homicídios em 2019, ou 242 por mês (https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-01/sao-paulo-tem-em-2019-menor-taxa-de-homicidios-desde-2001). Presumindo uma redução de 30%, seriam 73 mortes a menos em abril de 2020 (https://veja.abril.com.br/blog/radar/em-sp-homicidio-tem-queda-de-315-na-quarentena/). Então, considerando apenas a redução de mortes por causas externas (sem considerar, por exemplo, a redução de mortes por outras doenças infecciosas etc.), soma-se às 1.253 mortes (diferença entre o excesso na mortalidade e o número de mortes confirmadas pela COVID-19), essas 181 e 73. Assim, a estimativa de subnotificação subiria para 1.507 em abril de 2020. Então, o número “real” de mortes por COVID-19 em abril de 2020 no estado de São Paulo teria sido 1.507 (não registradas) mais 2.239 (confirmadas), i.e., um total de 3.746 (confirmadas + não registradas) (Figura).

Não obtivemos dados sobre redução ou aumento no número de mortes por outras causas específicas, além de mortes no trânsito e homicídio. Por isso, faremos aqui apenas uma simulação com dados hipotéticos para ilustrar como o aumento da mortalidade por outras causas, indiretamente devido à COVID-19, alteraria nossa estimativa de subnotificação de mortes por esta doença. Digamos que tenha havido 153 mortes a mais por infarto e 100 a mais por câncer em abril de 2020. Então, considerando apenas o aumento de mortes por infarto e câncer, subtrai-se das 1.253 mortes (diferença entre o excesso na mortalidade e o número de mortes confirmadas pela COVID-19), essas 153 e 100. Assim, a estimativa de subnotificação reduziria para 1.000 em abril de 2020. Então, o número “real” de mortes por COVID-19 em abril de 2020 no estado de São Paulo teria sido 1.000 (não registradas) mais 2.239 (confirmadas), i.e., um total de 3.239 (confirmadas + não registradas) (Figura).

Como não tivemos acesso aos dados sobre aumento ou redução de todas as causas de mortes separadamente, não temos como saber ao certo se essas 1.253 mortes (diferença entre o excesso na mortalidade e o número de mortes confirmadas pela COVID-19) é um indicador confiável da subnotificação. Por isso, presumimos o seguinte: primeiro, que essas 1.253 mortes não indicam diretamente a subnotificação, pois deve ter havido aumento e redução em outras causas de morte; segundo, o aumento de mortes devido ao efeito indireto da COVID-19, tais como mortes por doenças cardiovasculares e câncer, deve ser similar à redução de mortes devido ao efeito indireto das medidas para combater a COVID-19, tais como mortes por outras doenças infecciosas e por excesso de intervenções médicas (https://www.bmj.com/too-much-medicine); terceiro, como o Brasil é um país muito violento, apresentando consistentemente um número elevado de mortes no trânsito e homicídios, consideramos apenas as reduções nas mortes por essas causas no “ajuste” da subnotificação. Resumindo, as 1.253 mortes foram “ajustadas” apenas pela redução nas mortes no trânsito e homicídios, presumindo que as outras causas se anulam, i.e., aumentam e diminuem em quantidades similares (Figura).

Então, estamos presumindo que a subnotificação de mortes pela COVID-19 deve ser maior do que a diferença entre o excesso de mortalidade e o número de mortes por COVID-19 confirmadas. Em outras palavras, acreditamos que o excesso de mortalidade subestime o número de mortes pela COVID-19 no Brasil. Por isso, para estimar o número “real” de mortes pela COVID-19 no Brasil, optamos por “ajustar” o excesso de mortalidade pela redução nas mortes por causas externas. Utilizamos os dados de São Paulo como base para este “ajuste”.

Como já vimos, em São Paulo foram 2.239 mortes confirmadas pela COVID-19. Temos que somar a essas, as mortes por COVID-19 não registradas (subnotificação). A diferença entre o excesso na mortalidade e o número de mortes confirmadas pela COVID-19 foi de 1.253 e a redução nas mortes no trânsito e homicídio foi de 181 e 73, i.e., 254 mortes. O número de mortes por COVID-19 não registradas então seria 1.253 + 254, ou seja, 1.507. Então, o número “real” de mortes por COVID-19 em abril de 2020 no estado de São Paulo teria sido 1.507 (não registradas) mais 2.239 (confirmadas), i.e., um total de 3.746 (confirmadas + não registradas) (Figura). Como foram 2.239 mortes confirmadas pela COVID-19 de um total de 3.746 que aconteceram “de fato”, o número “real” de mortes pela COVID-19 foi 67% mais alto do que o número confirmado de mortes pela COVID-19.

 Presumindo que a subnotificação de mortes pela COVID-19 no Brasil seja similar ao que calculamos para o estado de São Paulo, aplicaremos uma correção aos dados do Brasil multiplicando o número de mortes confirmadas pela COVID-19 por 1,67.  Ou seja, vamos considerar que, no Brasil, o número “real” de mortes pela COVID-19 é 67% mais alto do que o número confirmado de mortes pela COVID-19, assim como foi nossa estimativa para São Paulo.

O risco de morrer pela COVID-19 e por outras causas no Brasil

A tabela apresenta o número de mortes e taxas de mortalidade por 100 mil habitantes pelas diferentes causas no Brasil em 2017[5]. Inserimos também duas estimativas para a COVID-19 com base no número de mortes em abril e em maio de 2020, corrigindo para o número de mortes pela COVID-19 não notificadas (subnotificação).  O número confirmado de mortes pela COVID-19 no Brasil em abril de 2020 foi 5.307 (https://ourworldindata.org/covid-deaths). Considerando a subnotificação, o número “real” de mortes pela COVID-19 em abril teria sido 8.863 (5.307 x 1,67). Multiplicando por 12 meses, teríamos 106.356 mortes no ano, que equivale a uma taxa de 51 mortes por COVID-19 por 100 mil habitantes. Esta é uma taxa altíssima, abaixo apenas de todos os tipos de doenças cardiovasculares e de todos os tipos de câncer. Em maio foram 23.368 mortes confirmadas pela COVID-19 (https://ourworldindata.org/covid-deaths). “Ajustando” pela subnotificação, o número “real” teria sido 39.024 (23.368 x 1,67). Se o número de mortes pela COVID-19 ficar estabilizado neste valor, teríamos 468.294 mortes por ano, equivalente a uma taxa de 225 por 100 mil por ano. Em maio de 2020 a taxa foi de 19 por 100 mil, a mais alta de todas as causas de morte, acima das doenças cardiovasculares (16 por 100 mil) e todos os tipos de câncer (10 por 100 mil).[6]

Conclusão

Essas estimativas são importantes não somente para termos uma ideia do tamanho da subnotificação e conhecermos o número “real” de mortes pela COVID-19 neste momento mas, mais importante, considerarmos que se a incidência da COVID-19 permanecer neste patamar, quando as medidas restritivas de mobilidade forem relaxadas, escolas reabrirem e a vida voltar relativamente ao normal, as batidas no trânsito, a violência urbana, outras doenças infecciosas e os procedimentos médicos eletivos danosos devem voltar ao padrão usual, de antes da pandemia. Então, o impacto da COVID-19 poderá ser ainda maior, pois ao contrário deste momento de crise em que estamos testemunhando a COVID-19 substituindo em parte outras causas de morte, poderemos ter que lidar no futuro próximo com a COVID-19 se somando a essas outras causas de morte.




Figura) Excesso de mortalidade como indicador do número “real” de mortes pela COVID-19, estado de São Paulo, abril de 2020
CV = COVID-19

Tabela) Número de mortes e taxa de mortalidade por 100 mil habitantes1 pelas diferentes causas, no Brasil em 20172. A COVID-19 é uma estimativa com base no número de mortes em abril e em maio de 2020.

Causa da morte
Número
Taxa
ano
Taxa
mês
COVID-19
maio 20203
468.294
225
19
Doenças cardiovasculares
388.268
187
16
Cânceres
244.969
118
10
COVID-19
abril 20204
106.356
51
4
Infecções respiratórias inferiores
84.073
40
3
Demência
73.419
35
3
Doenças respiratórias
72.746
35
3
Doenças digestivas
72.556
35
3
Homicídio
63.825
31
3
Diabetes
56.474
27
2
Trânsito
46.282
22
2
Doenças do fígado
36.269
17
1
Doença do rim
35.350
17
1
Neonatal
21.265
10
1
HIV / AIDS
15.406
7
1
Suicídio
14.145
7
1
Etc.
...
...
...
Total
1.287.605
619
52

1- Taxa calculada com base em uma população de 208 milhões de habitantes (Brasil em 2017); 2- O ano de 2017 foi o ano mais recente para o qual conseguimos acesso aos dados; 3- Essas 468.294 mortes pela COVID-19 projetadas para um ano derivam do número de mortes em maio de 2020, que foi de 23.368, multiplicado pela correção da subnotificação (1,67), que é igual a 39.024 e então multiplicado por 12 (meses). 4- Essas 106.356 mortes pela COVID-19 projetadas para um ano derivam do número de mortes em abril de 2020, que foi de 5.307, multiplicado pela correção da subnotificação (1,67), que é igual a 8.863 e então multiplicado por 12 (meses).



APÊNDICE
O número estimado de mortes por COVID-19 no Brasil a partir do número de pessoas que já foi infectado (pesquisa nacional de sorologia) e da letalidade do SARS-CoV-2 (1%, 1,5% ou 2%), e o número confirmado de mortes por COVID-19 “ajustado” para a subnotificação.

Março, Abril e Maio, Brasil

Número estimado de mortes pela COVID-19:

População brasileira, 208.000.000
1,4% já foi infectado pelo SARS-CoV-2 (EPICOVID19)
1,4% de 208.000.000 = 2.912.000
Letalidade = 1%, 1% de 2.912.000 = 29.120 mortes
Letalidade = 1,5%, 1,5% de 2.912.000 = 43.680 mortes
Letalidade = 2%, 2% de 2.912.000 = 58.240 mortes

Número confirmado de mortes pela COVID-19:

28.834 mortes (Our World in Data)
“Ajustado” pela subnotificação, 28.834 x 1,67% = 48.153 mortes




[1] Existem também relatos anedóticos de que médicos tenham evitado atestar na declaração de óbito que a morte foi causada pela COVID-19 a pedido da família. Há inúmeras circunstâncias que podem levar à subnotificação de mortes pela COVID-19 durante esta onda epidêmica.
[2] O número de mortes confirmadas ou suspeitas pela COVID-19 informadas no portal da transparência, registro civil, foi de 2.915 (https://transparencia.registrocivil.org.br/especial-covid - consultado em 13 de maio de 2020).
[3] Além da subnotificação há a possibilidade de sobrenotificação de mortes pela COVID-19. Durante a pandemia, quando não há possibilidade de confirmação através de teste diagnóstico a presença de sinais clínicos sugestivos de COVID-19 pode ser suficiente para levar médicos a declarar no atestado de óbito que a causa da morte foi COVID-19; parte desses pacientes morreu por outras causas. Além disso, houve pessoas que morreram com COVID-19, mas não de COVID-19 – por exemplo, pacientes idosos fragilizados que morreriam naquele momento mesmo se não tivessem contraído COVID-19 (https://www.straight.com/covid-19-pandemic/stanford-university-researcher-john-ioannidis-relies-on-data-to-puncture-some-of-myths-about).
 [4] Escolhemos São Paulo, pois os dados de lá costumam estar mais atualizados e corretos do que dos outros estados.
[5] Ano mais recente para o qual conseguimos dados.
[6] Foi interessante notar que as nossas estimativas “ajustadas” pela subnotificação estão coerentes com estimativas realizadas a partir do número de pessoas que já foi infectado (pesquisa nacional de sorologia) e de uma letalidade do SARS-CoV-2 entre 1,5 e 2% (APÊNDICE).

Nenhum comentário:

Postar um comentário