14 de junho de 2020
Três meses após a primeira morte registrada pela COVID-19 o
Brasil apresenta trajetória estranha
Tempo decorrido entre a primeira morte e o pico das mortes
diárias
Todos os países que temos acompanhado
neste blog começaram a reduzir o número diário de mortes registradas
até um mês e meio depois da primeira
morte registrada pela COVID-19: Itália, 37 dias depois; Espanha, 31
dias; EUA, 46 dias; Reino Unido, 37 dias. O Brasil começou a reduzir este
número muito mais tarde: somente 79 dias após a primeira morte registrada (e ainda
é cedo para concluir que o número de mortes registradas começou a reduzir consistentemente,
pois passaram apenas seis dias após este suposto “pico” - figura 1).[1]
Tempo decorrido entre o início do confinamento domiciliar e o
pico das mortes diárias
Outra característica estranha desta
primeira onda da pandemia no Brasil foi o tempo decorrido entre o início do
confinamento domiciliar e o pico das mortes diárias (i.e., o momento em que não
houve mais crescimento no número de registros de mortes diárias). O Brasil já dava
sinais preocupantes desde o final de abril. Nos outros países o pico ocorreu
aproximadamente três semanas após o início do confinamento domiciliar: na
Itália, 21 dias depois; na Espanha, 21 dias; no Reino Unido, 18 dias; nos EUA, 18
dias. No Brasil, o confinamento iniciou na barra do 7º dia. De acordo com o
padrão identificado nos outros países acompanhados aqui, o pico deveria ter sido
atingido 18 a 21 dias depois, i.e., pelo menos na barra do 28º dia. No entanto,
as barras subsequentes demonstraram que o número de mortes diárias continuou
crescendo. Identificamos, portanto, algo estranho no Brasil. Teoricamente o
confinamento domiciliar reduz imediatamente e drasticamente o número de infecções
e essa redução nas infecções deve reduzir o número de mortes de COVID-19 a
partir da terceira semana seguinte. Nos outros países isto de fato ocorreu.
Mas, no Brasil, chegamos a quase 300 mortes diárias nos 40º-42º dias, sem sinal
ainda de que tínhamos atingido o pico (https://nadanovsky.blogspot.com/2020/04/por-que-o-brasil-mesmo-depois-de-mais.html).
Esse crescimento continuou pelos menos até o 79º-81º dia, quando foram
registradas 1.361 mortes no Brasil (figura 1).
Figura 1. Número de mortes (eixo
vertical) em escala linear.
* Dia 1, primeira barra de cada país (dia em que houve a
primeira morte registrada de COVID-19): Brasil, Março 17; Itália, Fevereiro 21;
Espanha, Março 1; EUA, Fevereiro 29; Reino Unido, Março 5.
Lideranças políticas e confinamento domiciliar
Consideramos algumas explicações para
essa discrepância entre o Brasil e os outros países e concluímos no final de
abril que possivelmente a principal diferença tenha sido as lideranças
políticas. As autoridades naqueles países foram firmes e consistentes na
recomendação e aplicação do confinamento domiciliar, quando resolveram
adotá-lo. No Brasil, o confinamento domiciliar pode não ter sido respeitado de
forma tão ampla como nos outros países analisados aqui. Por exemplo, o
presidente do Brasil Jair Bolsonaro tem expressado de forma explícita e
consistente, desde o início desta pandemia, que ele não concorda com o
confinamento domiciliar. Esta atitude da principal autoridade do país pode ter
motivado muitas pessoas a não aderirem ao confinamento. Além disso, naturalmente,
o governo federal não fez um esforço suficiente de apoio financeiro às pessoas
que não têm condições de ficar em casa. Portanto, o confinamento
domiciliar no Brasil pode ter sido, na prática, algo diferente do que foi
nesses outros países. Esta explicação parece bem plausível, ainda mais se
considerarmos os vários sistemas de vigilância que relatam um percentual alto
de circulação de pessoas e veículos nas cidades durante o período de
confinamento. Concluímos naquela ocasião que o confinamento domiciliar foi
adotado, de fato, apenas por uma quantidade insuficiente da população (https://nadanovsky.blogspot.com/2020/04/por-que-o-brasil-mesmo-depois-de-mais.html).
As explicações dos “diversos surtos” ou da “população grande e
dimensão continental” não são convincentes para justificar porque o Brasil
continua apresentando números mais altos de infecções e mortes diárias
Uma explicação comum para o número
alto persistente de mortes diárias no Brasil é que aqui há não um surto
nacional, mas vários surtos locais ou regionais, cada um em um momento no
tempo. Como se o Brasil pudesse ser entendido não apenas como um país, mas alguns
países, com surtos relativamente independentes em momentos diferentes. Supostamente,
tudo isso se agravaria pelo fato do Brasil ser um país muito populoso e de dimensões
continentais. Essas explicações não são convincentes por várias razões.
Outros países também poderiam
potencialmente ter apresentado vários surtos persistentes locais ou regionais.
Por exemplo, Espanha, Itália e Reino Unido recebem uma quantidade muito maior
de turistas todos os anos do que o Brasil e eles visitam diversas regiões desses
países (https://en.wikipedia.org/wiki/World_Tourism_rankings).
Por isso, a probabilidade de introdução de pessoas infectadas pode ter sido
maior na Espanha (82 milhões de turistas), na Itália (62 milhões) e no Reino Unido
(36 Milhões) do que no Brasil (7 milhões); o SARS-CoV-2 foi um vírus importado
tanto para esses países como para o Brasil. Na Espanha, Itália e Reino Unido os
cidadãos se deslocam entre diferentes regiões e nada indica que isso ocorra
mais no Brasil do que nesses países. O número de viagens domésticas em que as
pessoas dormiram pelo menos uma noite fora foi o seguinte em 2018: Espanha, 425
milhões; Itália, 145 milhões; Reino Unido, 1 bilhão e 800 milhões; Brasil, sem
dados (https://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSetCode=TOURISM_DOMESTIC);
Há vários milhões de pessoas suscetíveis
nesses países e o número de pessoas infectadas poderia aumentar muitas vezes
antes que o tamanho populacional oferecesse um teto para novas infecções (pelo tamanho
populacional ou pela imunidade de grupo): Espanha, população de 46 milhões e 27
mil mortes pela COVID-19; Itália, população de 60 milhões e 34 mil mortes;
Reino Unido, população de 66 milhões e 41 mil mortes (https://ourworldindata.org/covid-deaths).
A Espanha realizou pesquisa nacional com o teste sorológico e constatou que
apenas 5% da população tinha anticorpos contra o SARS-CoV-2 (https://www.ciencia.gob.es/stfls/MICINN/Ministerio/FICHEROS/ENECOVID_Informe_preliminar_cierre_primera_ronda_13Mayo2020.pdf).
Portanto, o tamanho populacional parece não ser uma razão plausível para as
mortes pela COVID-19 não terem sido mais numerosas e persistentes nesses países,
assim como estão sendo no Brasil, pois lá, como aqui, também há pessoas
suscetíveis de sobra para serem infectadas.
Resumindo, o tamanho da população no
Brasil não parece uma justificativa plausível para o número maior de infectados
do que nesses países, para o número maior de surtos locais ou regionais em
momentos diferentes e para a persistência mais longa da onda de mortes brasileira.
Na realidade, poderia se esperar mais surtos espalhados na Espanha, na Itália e
no Reino Unido do que no Brasil, pois pelo número de turistas e mobilidade
interna, nesses países possivelmente houve um número maior e mais espalhado de
introduções de infecções pelo vírus do que no Brasil. Os EUA, com um padrão de
pandemia mais similar ao Brasil, também apresentaram surtos locais e regionais
em momentos diversos. O fato é que esses países, incluindo os EUA, conseguiram
evitar o aparecimento ou o crescimento de surtos locais e regionais, de forma
que em aproximadamente um mês e meio já tinham atingido o pico nacional de
mortes diárias. O Brasil é o outlier nesta história, seguido pelos EUA (figura
1).
Como explicar o forte declínio no número de registros de novas
mortes em Manaus?[2]
O Brasil foi o primeiro país a relaxar
o confinamento domiciliar antes de identificar redução clara e consistente no
número de registros de novas mortes. A consequência disso é imprevisível. Por
um lado, há uma proporção grande de pessoas sem anticorpos na população (http://epidemio-ufpel.org.br/uploads/downloads/19c528cc30e4e5a90d9f71e56f8808ec.pdf),
indicando que existem ainda muitas oportunidades para o vírus se espalhar
aumentando continuamente o número de infecções e mortes pela COVID-19. Por
outro lado, há situações como na cidade de Manaus, onde inexplicavelmente há
uma redução no número de registros de novas mortes (figura 2). A cidade de São
Paulo, onde a pandemia iniciou no Brasil, parece ter atingido o pico na semana
de 25 a 31 de maio, relatando um total de 746 mortes naquela semana. A cidade
do Rio de Janeiro parece ter atingido o pico na semana de 18 a 24 de maio com
914 mortes. Nenhuma das duas cidades mostrou um declínio grande e consistente
no número de novas mortes desde aquelas datas.[3]
Manaus atingiu o pico na semana de 4 a 10 de maio, com 284 mortes naquela
semana e, desde então, tem mostrado uma redução grande e consistente no número
de novas mortes registradas; mas, é importante notar que na semana passada (8 a
14 de junho) o número de mortes registradas subiu para 148, em comparação com
as 100 registradas na semana anterior (figura 2).
Figura 2. Número de mortes (eixo
vertical) em escala linear.
Em Manaus a proporção de pessoas com
anticorpos era 13% entre 14 e 21 de maio e 15% entre 4 e 7 de junho de 2020 (http://epidemio-ufpel.org.br/uploads/downloads/19c528cc30e4e5a90d9f71e56f8808ec.pdf).
Isso significa que o forte declínio no número de registros de novas mortes em
Manaus entre 11 de maio e 7 de junho tenha ocorrido em uma população com aproximadamente
85% de pessoas suscetíveis na população. Se o R0 do SARS-CoV-2 for 3[4]
– há a estimativa que seja algo em torno de 3 e 4 (https://www.imperial.ac.uk/mrc-global-infectious-disease-analysis/covid-19/report-21-brazil/),
seria necessário por volta de 70% de pessoas com anticorpos (ou não mais do que
30% suscetíveis) para impedir o crescimento nas infecções.
Como explicar que com 85% das pessoas ainda suscetíveis, Manaus
esteja reduzindo tanto as infecções?
No início de maio o Re do
SARS-CoV-2[5]
no Amazonas parece ter caído para 1,58, já em consequência das medidas sociais
para o combate ao vírus (https://www.imperial.ac.uk/mrc-global-infectious-disease-analysis/covid-19/report-21-brazil/).
Mas, com um Re deste valor as infecções ainda aumentam. Portanto, a
imunidade de grupo e a redução no R devido às medidas restritivas não parecem
ter sido suficientes para explicar o declínio das infecções em Manaus.
Uma possibilidade é que os 15% que se
infectaram fossem justamente as pessoas que viviam mais aglomeradas e seus
contatos, portanto, estavam mais expostas ao vírus. Pode ser que as 85% ainda
sem anticorpos vivam em áreas de menor densidade demográfica, não circulem pela
cidade (ou não circularam neste período analisado) ou tenham alguma característica
imunológica que as torne menos suscetíveis a este vírus. Devido a diferenças
na susceptibilidade individual, possivelmente as pessoas mais suscetíveis ao
vírus tenham falecido, restando após o primeiro surto pessoas mais resistentes.
Além disso, pode ser que a população de uma forma geral tenha se assustado com
o aumento na quantidade de infecções e de mortes e, consequentemente, passou a tomar
mais cuidados higiênicos e de distanciamento físico.
Possivelmente, as mesmas razões
aventadas aqui para explicar o declínio das mortes em Manaus sirvam também para
explicar a aparente redução recente (a partir de 3 de junho de 2020) no número de
novas mortes registradas no Brasil, após 79 dias do registro da primeira morte,
data em que o país acumulava 29.937 registros de mortes pela COVID-19.
Apesar do declínio identificado no
registro de mortes diárias após 3 de junho, em 13 de junho o país já acumulava
42.720 mortes e ainda tinha por volta de 97% suscetíveis (http://epidemioufpel.org.br/uploads/downloads/19c528cc30e4e5a90d9f71e56f8808ec.pdf).
[1]
Coreia do Sul é um dos seis países acompanhados por nós, mas não foi inserido
nesta análise porque não teve aumento no número de mortes e obviamente não teve
“pico” ou declínio para serem comparados.
[2]
Manaus é a única cidade no Brasil que, após atingir o pico de mortes diárias, manteve este número menor do que o pico por cinco semanas consecutivas.
[3]
Quando se fala que a pandemia iniciou nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro e que agora está
havendo “interiorização” das mortes para municípios menores, deve-se salientar que
a pandemia não “passou” por essas cidades e rumou para outros municípios; a
pandemia se espalhou, mas continua presente nessas cidades (figura 2).
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