É compreensível que após testemunhar uma grande redução no número de mortes pela COVID-19 as pessoas em alguns países tenham relaxado as medidas de isolamento. Mais difícil de entender e de aceitar é constatar o retorno de atividades não essenciais nos EUA e especialmente no Brasil, onde o número de mortes continua muito elevado. Desde o início desta pandemia até o dia 28 de setembro de 2020, os EUA sofreram 19.006 novas mortes na semana mais fatal e 4.070 na menos fatal depois deste pico, uma redução de 14.936 mortes em termos absolutos e de cinco vezes em termos relativos (Figura 1). No Brasil a semana mais fatal matou 7.677 e a menos, depois deste pico, 4.759 pessoas, uma diferença de 2.918 mortes, o que significa uma redução de apenas 1,6 vez. Desde então, não houve mais redução no número de novas mortes por semana no Brasil (Figura 1).
Figura 1. Número de novas mortes confirmadas por COVID-19 em uma semana. O eixo horizontal representa a semana mais fatal desde o início da pandemia, em março, até 28 de setembro de 2020 (1), a semana menos fatal depois de 1 (2) e a semana mais recente (findada em 28 de setembro de 2020) (3). O eixo vertical mostra o número acumulado de novas mortes na semana. O que chama mais atenção é a pequena mudança de 1 a 2 no Brasil, tão menor em comparação com os países desenvolvidos analisados aqui. Esses países também sofreram muitas mortes na semana mais fatal, mas reduziram drasticamente este número. Por isso, a inclinação da reta entre 1 e 2 nos outros países é bem maior do que no Brasil. A Coreia do Sul é a grande exceção positiva, pois conseguiu manter o número de novas mortes sempre em um nível muito baixo; por isso a linha da Coreia está praticamente horizontal desde a semana mais fatal (1), passando pela menos fatal após 1 (2) até a mais recente (3).
Em contraste com os EUA e especialmente com o Brasil, Reino Unido, Itália e Espanha tiveram entre cinco a sete mil mortes cada na semana mais fatal, mas reduziram drasticamente este alto número de mortes para menos de 50 mortes na semana menos fatal após este pico, com reduções de 135 a 506 vezes no número de mortes. Desde então, houve aumentos no número de mortes semanais confirmadas para 128 na Itália, 211 no Reino Unido e 737 na Espanha, na semana finalizada em 28 de setembro de 2020. Espanha e Reino Unido reintroduziram medidas restritivas diante deste aumento recente no número de mortes, ainda que ele esteja longe das mais de seis mil mortes nas semanas mais fatais. A Coreia do Sul é uma grande estória de sucesso, pois conseguiu manter o número de novas mortes semanais abaixo de 50 mesmo na semana mais fatal da pandemia naquele país (Tabela 1).
Tabela 1. Número de novas mortes confirmadas por COVID-19 em uma semana. Coluna denominada “maior número” representa a semana mais fatal da pandemia, até 28 de setembro de 2020, nos respectivos países incluídos na tabela. Coluna “menor número” representa a semana menos fatal após este pico e “mais recente” a semana findada em 28 de setembro de 2020. O que chama mais atenção é a pouca redução no número de mortes no Brasil (entre a semana com o maior número de mortes, i.e., mais fatal, e a semana com o menor número de mortes após este pico, i.e., menos fatal) e o sucesso da Coreia do Sul em manter o número de mortes abaixo de 50, até mesmo na semana mais fatal naquele país. Chama a atenção também a manutenção do alto número de mortes na semana mais recente, tanto no Brasil quanto nos EUA. Finalmente, todos os países estão testemunhando um aumento recente no número de mortes, o que fica caracterizado pelos números positivos na coluna da diferença entre a semana mais recente e a com o menor número de mortes depois do pico (penúltima coluna).
Curiosamente, a sociedade brasileira, com quase cinco mil novas mortes confirmadas na semana findada em 28 de setembro de 2020, vem testemunhando uma tendência comportamental na direção oposta ao esperado, ou seja, diminuindo as medidas restritivas. Atividades de lazer claramente não essenciais, tais como ir à praia, bar, restaurante e a prática de esportes coletivos foram retomadas por um grande número de pessoas, mesmo em cidades como o Rio de Janeiro, onde ainda têm sido confirmadas entre 200 e 400 novas mortes por COVID-19 por semana nas últimas 12 semanas (Figura 2). Shopping centres também já estão abrindo para compras presenciais e escolas para a presença física de alunos, professores e funcionários.
Este
comportamento aparentemente contraditório da população e das autoridades
brasileiras precisa ser entendido. Contraditório porque a redução no número de
novas mortes confirmadas pela COVID-19 no Brasil foi muito pequena, mas ainda
assim autoridades e população concordam em relaxar as medidas de restrição de
mobilidade e convívio social não essenciais. Ou seja, no passado recente houve
no Brasil a aceitação de que devido ao número alto de mortes pela COVID-19
deveria haver restrições das atividades não essenciais, mas agora, passadas
algumas semanas, o número de novas mortes confirmadas continua alto (redução
foi somente de 1,6 vez, para aproximadamente 5 mil mortes semanais, em contraste
com reduções de 135 a 506 vezes para menos de 50 mortes na Itália, Espanha e
Reino Unido), não se aceita mais as mesmas restrições. Por quê?
O
que mudou na pandemia no Brasil que estimulou o relaxamento, permitindo o
retorno de atividades não essenciais?
Desde
o texto mais recente deste blog em 27 de julho de 2020, portanto há dois meses,
testemunhamos alguns eventos surpreendentes e difíceis de entender. Naquela ocasião
eu escrevi o seguinte sobre o relaxamento das restrições às atividades não
essenciais: “... é possível que as normas mais intensificadas de higiene, a
atenção ao distanciamento físico, o uso de máscara, a imunidade adquirida nesta
e em exposições a outros vírus e a atenuação evolutiva do SARS-CoV-2, evitem o
aumento no número de mortes e até o reduzam. No entanto, é importante ter em
mente que esta é uma aposta incerta e um risco que deve ser corrido de forma
consciente. A aposta que está sendo feita é o relaxamento das restrições de
mobilidade em um momento em que a transmissão do vírus ainda é muito alta e não
há sistema robusto de identificação de infectados e rastreamento de seus
contatos.” O resultado da aposta foi que, surpreendentemente, o relaxamento das
restrições de mobilidade não foi associado a um aumento nas mortes pela
COVID-19 na cidade do Rio de Janeiro; nos dois meses mais recentes, desde o
final de julho até hoje final de setembro, período em que houve nítido
relaxamento das restrições de circulação e aglomeração, o número de novas
mortes confirmadas pela COVID-19 permaneceu entre 200 e 400 por semana (Figura 2).
Além
disso e mais surpreendentemente, o excesso de mortalidade total que constatamos
nos meses de abril e maio na cidade do Rio de Janeiro (2.788 e 4.583 mortes em
excesso em 2020 em relação à média dos mesmos meses em 2018 e 2019) foi
desaparecendo em junho (330 mortes em excesso) e reverteu em julho e agosto
(660 e 355 mortes a menos, respectivamente, em 2020) (Tabela 2). Como
interpretar mortes a menos em julho e agosto de 2020, meses em que houve entre
300 a 400 novas mortes por semana confirmadas por COVID-19? Se o número de
mortes por outras causas permaneceu similar em 2018, 2019 e 2020, deveríamos constatar
um excesso de 1.200 a 1.600 mortes em 2020, devido às mortes pela COVID-19 em
2020. Uma possível explicação para não ter havido esse excesso na mortalidade
total a despeito do grande número de mortes pela COVID-19 em 2020 é a redução
no número de mortes por outras causas em 2020 devida às medidas para conter a
transmissão do SARS-CoV-2. Por exemplo, com a restrição de mobilidade na
cidade, deve ter reduzido o número de mortes no trânsito e por homicídio. Com os
cuidados higiênicos, o distanciamento social e o uso de máscara, deve ter
reduzido mortes por outras viroses e doenças bacterianas. Com o redirecionamento
dos cuidados médicos para a COVID-19 e o consequente racionamento dos
tratamentos médicos eletivos de uma forma geral, deve ter reduzido o número de mortes
por excesso de tratamentos médicos.
Tabela
2. Registro de óbitos por todas as causas na cidade do Rio de Janeiro. Números
absolutos de mortes.
De qualquer forma, o número de novas mortes pela COVID-19 continuou alto durante esses dois meses mais recentes, período em que as pessoas foram relaxando cada vez mais as medidas de distanciamento social. Isso ocorreu no Brasil de uma forma geral, em locais com surtos mais recentes e mesmo em cidades onde o surto iniciou há muitos meses e continua com uma alta transmissão do vírus, como as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo (Figuras 2 e 3).
Figura 3. Cidade de São Paulo. Número de registros de novas mortes no eixo vertical. Cada barra representa uma semana. Por exemplo, a semana mais recente é representada pela barra 21-27/set; em São Paulo foram 222 novos registros de mortes pela COVID-19 de segunda-feira dia 21/9 a domingo dia 27/9.
Como
vimos, o relaxamento no Brasil não pode ser explicado por alguma grande redução
no número de novas mortes confirmadas pela COVID-19. O cansaço e o tédio do
isolamento social podem ser uma razão. Além disso, há pessoas que precisam
voltar a trabalhar fora de casa para conseguir sobreviver ou manter seu padrão
de vida. Destaquei a frase anterior porque essas são motivações moralmente legítimas e, provavelmente, a razão mais forte para o relaxamento do confinamento domiciliar por uma grande parte da população brasileira. Porém, essa explicação por si só não basta. Vamos considerar
um cenário hipotético em que a letalidade deste vírus fosse muito mais alta.
Por exemplo, se a mortalidade entre os infectados fosse algo em torno de 50%
(ou seja, para cada duas pessoas infectadas uma morresse), indubitavelmente não
haveria muita dificuldade em convencer as pessoas, autoridades e governos a
manter o isolamento social e as medidas de restrição às atividades não
essenciais – pelo menos praia, bar, restaurante, esportes coletivos, shopping
centres e escolas.
O
valor que a sociedade brasileira atribui à vida humana
Minha
hipótese para explicar o recente relaxamento das medidas de restrição de
mobilidade no Brasil é a seguinte: população e autoridades perceberam que o
número de mortes pela COVID-19 parou de crescer. Este fato forneceu uma ideia
mais clara do risco de morrer por essa doença. Antes não tínhamos
ideia do “tamanho da besta”, ou seja, não sabíamos onde poderíamos chegar no
número de novas mortes. Passados quase três meses, não houve grande redução no
número de novas mortes, mas também não houve aumento. Essa estabilidade no
número de novas mortes foi testemunhada mesmo em cidades onde houve aumento na
circulação e aglomeração de pessoas. Falta somente um detalhe para completar a explicação:
o valor que a sociedade brasileira atribui à vida humana.
Conviver
com 5.000 mortes adicionais por semana devido a uma nova doença parece ser aceitável para
a sociedade brasileira. Por exemplo, aqui há aproximadamente 60 mil e 45 mil
mortes por assassinato e por acidente de trânsito por ano, respectivamente.
Considerando o tamanho da população, temos no Brasil 30 assassinatos e 22
mortes no trânsito por 100 mil habitantes por ano. Na Itália, Espanha e Reino
Unido, é 1 ou menos assassinato por 100 mil habitantes por ano. Ou seja, 30
vezes a menos que no Brasil. Mortes no trânsito nesses três países não passam
de 5 por 100 mil habitantes por ano.
Portanto,
a sociedade brasileira convive com riscos de morrer por causas evitáveis muito mais
altos do que as sociedades em países desenvolvidos. Por que com a COVID-19
seria diferente?
Gostei bastante pela clareza dos argumentos.Mas muito triste, infelizmente.
ResponderExcluirObrigado pelo feedback.
ExcluirPaulo Nadanovsky.
Que a "a sociedade brasileira convive com riscos de morrer por causas evitáveis muito mais altos do que as sociedades em países desenvolvidos", além de conviver com índices de extrema violência, em todas as suas dimensões, não é novidade, aliás, não apenas no Brasil (veja a Colômbia, por ex, na mesma região). Agora, o veredito de que isso se deve ao "valor que a sociedade brasileira atribui à vida humana", é um pouco forte e irresponsável, se não for melhor qualificado... De que "sociedade" se está falando??? Será mesmo "a sociedade" brasileira que desvaloriza tanto vida?? E o Estado e as instituições, que papel jogam nessa equação?? Quanta confiança nos números e dados oficiais!!
ResponderExcluirPrezada,
ExcluirObrigado pelas indagações e críticas. Vou tentar responder a cada uma delas.
1- "O veredito de que isso se deve ao "valor que a sociedade brasileira atribui à vida humana", é um pouco forte e irresponsável, se não for melhor qualificado..."
Minha resposta: Não dei um "veredito", ofereci uma hipótese. Concordo que seja forte, mas, infelizmente, é o que me parece. Irresponsável, não entendi porque. Estou apenas expressando uma hipótese de forma transparente, justificada e em boa fé;
2- "De que "sociedade" se está falando??? Será mesmo "a sociedade" brasileira que desvaloriza tanto vida?? E o Estado e as instituições, que papel jogam nessa equação??"
Minha resposta: Acredito que estado e instituições são partes da sociedade, pois o regime no Brasil é democrático e com eleições diretas.
Além disso, as políticas de relaxamento de atividades não essenciais incentivadas pelo estado e por instituições estão recebendo apoio de grande parte da sociedade, em todos os níveis socioeconômicos e educacionais. Então, me parece correto nesta instância se referir genericamente à sociedade brasileira.
3- "Quanta confiança nos números e dados oficiais!!"
Minha resposta: Não percebi nada nos dados que me chamasse a atenção para que eu desconfiasse de algo errado. Diante do que tenho observado nos dados desde o início da pandemia, os dados que utilizei para esta análise parecem coerentes. O que exatamente nos dados lhe pareceu estranho ou errado que levasse a desconfiar de algo errado?
Paulo Nadanovsky.
Dr Paulo
ResponderExcluirA Indiferença; parece ser um vírus bem letal.
Seja ela, no âmbito de valores individual e ao não desenvolvimento de uma vigília cognitiva de virtudes (prudência,justiça,fortaleza e temperança).
Apostar: -nos torna vitima
previsão : – nos dá um alerta de perigo ,e deixa -nos a chance de correr o risco
A orientação da população foi com base realmente em “aposta” abafou quem com qualidade cientifica poderia prever e predizer e educar-nos. (os que tem qualidade foram abafados)
Seus textos são pertinentes e de fácil compreensão .obrigado
camilo