Mil mortes e abertura de comércio, serviços e escolas
Já estamos há várias semanas registrando aproximadamente mil novas mortes por dia no Brasil por COVID-19. Nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro esses valores têm variado aproximadamente entre 600 e 400 novos registros de mortes por semana. Na semana passada esses registros reduziram para 444 mortes em São Paulo e 320 no Rio de Janeiro (Figura 1).
Figura 1. Número de registros de novas mortes no eixo vertical (escala linear). Cada barra representa uma semana. Por exemplo, a semana mais recente é representada pela barra 20-26/jul; em São Paulo foram 444 novos registros de mortes pela COVID-19 de segunda-feira dia 20/7 a domingo dia 26/7.
Não é possível prever por quanto tempo conviveremos com esse nível de mortes pela COVID-19. Nas próximas semanas pode haver um aumento nas mortes por esta doença, pois muitas pessoas que estavam isoladas passaram a sair de casa e a se expor ao vírus SARS-CoV-2 pela primeira vez. Além disso, mesmo aquelas que não estavam confinadas parecem ter relaxado os cuidados de distanciamento físico. Um aumento no número de mortes é previsível devido à abertura do comércio, do lazer, de bares e restaurantes e possivelmente de escolas. Se metade da população se enquadrar nesta categoria (estava isolada e passou a sair de casa), podemos testemunhar uma duplicação no número de mortes, para aproximadamente duas mil novas mortes diárias registradas no Brasil sendo mil por semana na cidade de São Paulo e 700 por semana na cidade do Rio de Janeiro. Além disso, com o aumento da mobilidade devem iniciar em outras cidades (até então livres do vírus) surtos do SARS-CoV-2 a partir do vírus importado de cidades como São Paulo, Rio e outras que já apresentam surtos locais.
Por outro lado, é possível que as normas mais intensificadas de higiene, a atenção ao distanciamento físico, o uso de máscara, a imunidade adquirida nesta e em exposições a outros vírus e a atenuação evolutiva do SARS-CoV-2, evitem o aumento no número de mortes e até o reduzam. No entanto, é importante ter em mente que esta é uma aposta incerta e um risco que deve ser corrido de forma consciente. A aposta que está sendo feita é o relaxamento das restrições de mobilidade em um momento em que a transmissão do vírus ainda é muito alta e não há sistema robusto de identificação de infectados e rastreamento de seus contatos.
Excesso de mortalidade por todas as causas
A restrição da mobilidade, do comércio, dos serviços e das escolas reduzem o risco de morte não somente pela COVID-19, mas também por outras causas, tais como acidente de trânsito, homicídio e outras doenças infectocontagiosas. Além disso, ainda que o acesso limitado aos serviços de saúde durante a pandemia da COVID-19 possa aumentar o risco de mortes por falta de tratamentos médicos necessários, ele pode diminuir o risco de mortes pela redução de tratamentos médicos desnecessários (https://www.bmj.com/too-much-medicine). Por exemplo, a menor exposição da população aos serviços de saúde durante a pandemia pode reduzir os casos de infecção hospitalar, de exames, cirurgias e radiações desnecessárias danosas, de tratamento precoce em programas de rastreamento que trazem mais danos do que benefícios para os participantes.
Portanto, o relaxamento das restrições de mobilidade tem potencial de aumentar não somente o risco de mortes pela COVID-19, mas também por outras causas de mortes. Por isso, a partir deste momento, pode ser útil conhecermos o nosso risco de morrer não somente pela COVID-19, mas por qualquer causa, durante a pandemia.
Uma forma de conhecermos este risco é calcular o excesso de mortalidade. O excesso de mortalidade pode ser estimado comparando a mortalidade por todas as causas (mortalidade total) nos meses da pandemia em 2020 com a mortalidade total nos mesmos meses de anos anteriores. A diferença entre a mortalidade total em 2020 e nos anos anteriores (i.e., o excesso de mortalidade) pode ser atribuída à pandemia. Parte desta diferença é devida à morte pela COVID-19 diretamente, que surgiu em 2020, mas não existia em anos anteriores, mas parte é devida indiretamente a mudanças em outras causas de morte durante a pandemia
(https://nadanovsky.blogspot.com/2020/05/comparacao-do-risco-de-morrer-pela_31.html).
O excesso de mortalidade geral é um indicador útil não somente para termos uma ideia do impacto da pandemia no risco de morrer de uma forma geral, mas também para não sermos enganados pela possível subnotificação de mortes pela COVID-19; a subnotificação pode ocorrer por diversas razões, incluindo a falta de testes laboratoriais para confirmação da doença e a manipulação de dados por motivações políticas.
Como temos convivido em semanas recentes com uma incidência relativamente constante de registro de novas mortes diárias, é interessante, do ponto de vista do indivíduo, verificar o impacto da pandemia no risco de morrer para cada 100 mil habitantes, pois ele pode representar um risco relativamente estável pelo menos nos próximos meses ou semanas. É importante notar que o risco relatado neste texto é a média na população toda, mas na realidade, o risco é maior nas pessoas mais velhas e menor nas mais jovens.
Cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro
Em São Paulo houve excesso de 2510, 2188 e 3058 mortes em abril, maio e junho de 2020, respectivamente, comparado com as médias desses meses em 2018 e 2019 (https://transparencia.registrocivil.org.br/registros - consultado em 25 de julho de 2020). Por exemplo, em junho de 2018 e 2019 morreram em média 64 pessoas por 100 mil habitantes, enquanto em junho de 2020 morreram 88 por 100 mil. Isso significa que houve excesso de 24 mortes por cada 100 mil habitantes em junho de 2020 (Tabelas 1 e 2).
Tabela 1. Registro de óbitos por todas as
causas nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro – Números absolutos de
mortes.
Tabela 2. Registro de óbitos por todas as causas nas cidades
de São Paulo e do Rio de Janeiro - Mortes por 100 mil habitantes.
(https://nadanovsky.blogspot.com/2020/05/comparacao-do-risco-de-morrer-pela_31.html).
Conclusão
O excesso de mortalidade nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro nos meses da pandemia (abril, maio e junho de 2020) fez com que o risco de morrer nessas cidades aumentasse num grau acima do risco imposto pelos principais matadores habituais, por exemplo, doenças cardiovasculares (16 por 100 mil), cânceres (10 por 100 mil), homicídios (3 por 100 mil), trânsito (2 por 100 mil); em São Paulo, o excesso de mortalidade variou de 18 a 24 por 100 mil nos meses de abril, maio e junho de 2020. Com o relaxamento da restrição de mobilidade é esperado que a situação atual, que já é calamitosa, piore ainda mais, pois é plausível que aumente não somente as mortes pela COVID-19, mas também no trânsito, por homicídio, por outras doenças infectocontagiosas e pelo retorno da medicina em excesso (https://www.bmj.com/too-much-medicine).