28 de março de 2020
Estratégia para lidar com a pandemia
da COVID-19 no Brasil
Em 17 de março deste mês
foi registrada e primeira morte por COVID-19 no Brasil. Hoje, onze dias depois,
já foram registradas 111 mortes por esta doença.
Com base no que aconteceu
nos países que começaram a enfrentar esta pandemia mais cedo, por exemplo a
China, a Coreia do Sul e alguns países europeus, a estratégia ideal seria
testar todas as pessoas para detectar a presença do vírus, isolar por 15 ou 20
dias quem tiver infectado e liberar para retornar à vida normal quem não
estiver infectado. Como o foco principal da epidemia no Brasil está em São
Paulo e no Rio de Janeiro esta testagem seria realizada nesses dois locais.
Por que o Brasil não está
adotando esta estratégia ideal? Porque não há testes suficientes. Na
impossibilidade de adotarmos a estratégia ideal, temos que adotar a estratégia
possível que seja provavelmente a mais prudente. Com a escassez de testes para
detectar a presença do vírus em cada pessoa, no momento a prioridade tem sido
usar o teste em paciente internado com suspeita de estar doente devido a
COVID-19, priorizando os casos mais graves. Na medida em que mais testes estão
sendo disponibilizados a segunda prioridade tem sido usar o teste em
profissional de saúde que está na linha de frente atendendo a doente infectado
por este vírus.
A justificativa para usar o teste em pacientes internados é
para ajudar a contar o número de casos confirmados e assim podermos estimar a
velocidade de propagação da epidemia na população, para ajudar no manejo do paciente
e para identificar os contatos deste paciente com o objetivo de recomendar o
isolamento deles (ou, se houver disponibilidade de testes, fazer a testagem
deles e isolar quem estiver infectado pelo vírus). A justificativa para usar o teste em
profissional da saúde é porque este é o grupo mais exposto ao vírus e que tem a
maior probabilidade de se infectar. Isso ocorre porque todas as pessoas que
sentem algum sintoma preocupante procuram os serviços de saúde, então os
serviços de saúde concentram pessoas que provavelmente estão infectadas. Além
disso, o profissional de saúde quando é infectado pode ser um grande
disseminador do vírus, pois tem contato físico próximo com muitas pessoas; muitos
pacientes atendidos procuram os serviços de saúde por outras doenças e não estão
infectados pelo novo coronavírus, mas
correm o risco de serem infectados por este vírus pelo próprio profissional de
saúde que os atenderão. A segunda justificativa está correta, mas a primeira, a
meu ver, é questionável e merece mais reflexão pelos especialistas.
Na situação em que
estamos no momento de escassez de testes e tendo que definir prioridades sobre
quem deve ser testado, usar o teste em pacientes suspeitos internados pode não
ajudar muito pelas seguintes razões: (aviso: esta minha opinião de que o
paciente suspeito internado não é prioritário para ser testado está em
desacordo com as recomendações da Organização Mundial da Saúde, a opinião dos
especialistas com quem conversei e em relação ao que tenho lido e ouvido na
mídia) 1- É uma forma ruim de contar o número de infectados na população,
portanto não fornece estimativa confiável sobre a velocidade de propagação da
epidemia na população, pois esses pacientes não representam bem a propagação na
população toda; 2- Ajuda pouco no manejo do paciente, pois os sinais e sintomas
clínicos sugestivos da COVID-19 já são suficientes para orientar as principais decisões
clínicas do médico. Inclusive, esses pacientes devem ser encaminhados
imediatamente para unidades dedicadas exclusivamente ao atendimento de
pacientes infectados, para evitar o contágio de pacientes e profissionais dedicados
ao atendimento dos outros pacientes (esperar pelo resultado do teste para só depois
internar o paciente suspeito em unidade separada pode ser arriscado – melhor
separar o quanto antes – mesmo que seja um falso-positivo); o risco aqui
(“trade off”) seria expor pacientes não infectados pelo novo coronavírus a um
ambiente em que teriam maior risco de serem contaminados. As consequências clínicas
graves da COVID-19 demandam as mesmas intervenções clínicas independentemente
do paciente estar ou não infectado pelo vírus (uma ressalva é que o
recrutamento de pacientes para participar de ensaio clínico para testar novos
tratamentos para a COVID-19, tais como a Cloroquina, que obviamente demanda a definição prévia de
elegibilidade para participar do ensaio. A outra ressalva é que alguns médicos
podem optar, nas circunstâncias excepcionais desta pandemia, por utilizar
nesses pacientes tratamentos experimentais tais como a Cloroquina, mesmo na
ausência de evidência científica padrão, i.e., evidência advinda de ensaios
clínicos controlados randomizados); 3- Não ajuda na orientação de isolamento de
contatos por duas razões: primeiro, sob uma política de isolamento irrestrito o
isolamento dos contatos já ocorre, independentemente da pessoa ser ou não um
contato confirmado de uma pessoa infectada e segundo, em um ambiente de
pandemia, uma pessoa internada com sinais e sintomas clínicos da COVID-19 a
priori já leva a uma recomendação de isolamento dos contatos, antes mesmo de se
confirmar a presença do vírus através do teste.
Resumindo, o resultado do
teste de pacientes suspeitos internados não muda a conduta clínica e não é a
melhor forma de medir a disseminação da epidemia. A única razão pela qual me
preocupa a utilização do teste em pacientes hospitalizados é a escassez de
testes; se não há testes suficientes temos que escolher bem as prioridades.
Quem
isolar
1- Com base no que
aconteceu em Wuhan na China, provavelmente a estratégia mais eficaz para
diminuir a velocidade e até mesmo cessar esta epidemia é o isolamento físico
de todas as pessoas; se esta estratégia for adotada radicalmente,
possivelmente em quatro a oito semanas o número de novos casos praticamente
cessará. Curiosamente, o local mais seguro neste momento para não se contaminar
pelo novo coronavírus é, possivelmente, Wuhan na China, onde esta estratégia
foi adotada. Mas, para o sucesso desta estratégia, todos os locais com casos
registrados (mas principalmente São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal e
Minas Gerais) devem isolar todas as pessoas (obviamente, com exceção dos
profissionais de saúde, de segurança, de produção e distribuição de alimentos e
medicamentos e outros profissionais essenciais).
2- Organizar os serviços
de saúde de forma que pacientes internados suspeitos de estarem infectados pelo
novo coronavírus e profissionais dedicados ao atendimento desses pacientes estejam
isolados em unidades de atendimento específicas, dedicadas
exclusivamente a esta doença.
Quem
testar
1- Profissionais de
saúde
Usar os testes em
profissionais de saúde é de fato importante. Identificar o profissional de
saúde contaminado e isolá-lo imediatamente é uma forma provavelmente efetiva de
diminuir a velocidade de propagação do vírus, dado o contato físico constante
deste profissional com muitas pessoas, grande parte delas idosas ou não idosas
com outras doenças que as tornam mais vulneráveis à COVID-19.
2- Amostras da
população nos arredores dos endereços dos pacientes internados suspeitos de
COVID-19
Embora o isolamento
físico (confinamento em casa) seja a estratégia indicada para todas as pessoas,
muitas pessoas que se sentem saudáveis não aderem a esta recomendação e saem de
casa mais do que o estritamente necessário (Ver https://nadanovsky.blogspot.com/2020/03/a-tragedia-dos-bens-comuns-e-pandemia.html). Provavelmente, uma dessas pessoas
que continue circulando, ao receber o diagnóstico de que está infectada com o novo
coronavírus, altere seu comportamento e passe a aderir ao confinamento em casa.
A probabilidade de
encontrar pessoas infectadas nas áreas de circulação (residencial e de
trabalho) de pessoas internadas suspeitas de COVID-19 deve ser maior.
3- Amostras aleatórias
representativas da população em áreas com grande densidade populacional
Possivelmente,
grande parte das pessoas infectadas pelo novo coronavírus não apresenta sintoma
algum ou apenas sintomas leves que podem parecer com um resfriado comum. Essas
pessoas podem ser disseminadoras frequentes do vírus, ainda mais por não
perceberem que oferecem riscos aos outros. Há estimativas (ainda que incertas)
de que aproximadamente 70% das pessoas com COVID-19 foram infectadas por uma
pessoa sem ou com sintoma leve. Como já argumentado, provavelmente, ao receber
o diagnóstico de que está infectada pelo novo coronavírus, uma pessoa
assintomática ou com sintomas leves altere seu comportamento e passe a aderir
ao confinamento em casa.
Para aumentar a capacidade do serviço
de saúde
No Brasil há um número grande de internações devido a batidas
de carro, atropelamentos e violência (“causas externas”). A política de
isolamento físico geral, através do confinamento de toda a população em suas
residências, diminui imediatamente a ocupação dos serviços de saúde com esses
transtornos. Por
isso a política de isolamento irrestrita não só diminui a propagação do vírus
como também aumenta a capacidade do serviço de saúde para lidar com os casos
mais graves de COVID-19 e com outros problemas graves de saúde. Isso significa
que, teoricamente, a redução nas “causas externas” de internação pode compensar
o aumento da demanda aos serviços de saúde devido à COVID-19. Epidemiologistas
deveriam acompanhar diariamente esses dados de internações por causas externas
(e pelas outras principais causas de internações) para podermos planejar ações
com dados mais confiáveis e fazer a alocação de recursos de forma racional.
2- Diminuir ocupação
dos serviços por pessoas que tenham problemas que podem esperar
Adiar e não marcar
cirurgias não emergenciais.
3- Expandir os
serviços de saúde construindo novas unidades de atendimento
Para agilizar o retorno às atividades
econômicas e sociais
1- Aplicar de forma
radical a estratégia do confinamento em casa de todas as pessoas (com
exceção das pessoas essenciais nessas circunstâncias, já listadas
anteriormente). Com base no que ocorreu em Wuhan na China este confinamento
deve demorar de quatro a oito semanas.
2- Testar grandes
parcelas da população com um teste de alta especificidade, isolar os infectados
por três semanas e liberá-los do confinamento.
Caso o confinamento
irrestrito, i.e., de todas as pessoas, tenha que se estender por um período
mais longo devido a um aumento persistente da epidemia (por exemplo, com
aumento persistente no número de mortes registradas por COVID-19), deve-se
começar a priorizar também a agilização da volta às atividades econômicas e
sociais das pessoas já com imunidade adquirida contra este vírus; uma paralisação
ampla (“lockdown”) muito longa das
atividades econômicas vai, a partir de um certo momento, começar a causar mais mal
do que bem, podendo levar a mais mortes do que seriam causadas pela epidemia do
COVID-19.
Testes diagnósticos podem
ser sensíveis ou específicos. Testes com alta especificidade são úteis
(válidos) para confirmar a presença da doença, enquanto testes com alta
sensibilidade são úteis (válidos) para descartar a presença da doença. Como o
objetivo aqui é agilizar a volta das pessoas às atividades econômicas e sociais
de forma segura, i.e., assegurando que elas não serão disseminadoras do
contágio (pelo que sabemos até agora sobre o comportamento provável deste
vírus), devemos priorizar o uso de testes com alta especificidade,
identificando com um alto grau de certeza quem de fato está ou esteve infectado
(aqueles que tiverem um resultado positivo no teste). Essas pessoas então devem
ficar em isolamento por três semanas e após este período voltar às atividades
habituais, cessando o confinamento em casa; até este momento, podemos presumir
que quem foi infectado pelo vírus e ficou curado passou a ter imunidade e deixa
de ser um disseminador dele.
Há, portanto, duas
implicações desta testagem populacional com um teste de alta especificidade. 1-
Pessoas que tiverem resultado positivo: confinamento por três semanas e retorno
seguro às atividades com o fim do confinamento (se houver disponibilidade de
testes para anticorpos, pode ser que o período de confinamento após um
resultado positivo seja mais breve); 2- Pessoas que tiverem resultado negativo:
confinamento por período indefinido. Um resultado negativo em um teste com alta
especificidade geralmente não é confiável, i.e., tem grande chance de ser falso
negativo.
Dessa
forma, com repetidas rodadas de testagem (quanto mais abrangentes e frequentes
melhor), pouco a pouco mais pessoas com imunidade adquirida seriam liberadas do
confinamento e voltariam paulatinamente a reanimar as atividades econômicas e
sociais nas ruas, lojas, empresas, praias, parques, ou seja, nos espaços
públicos de uma forma geral.
Para se obter a
informação com o maior nível de certeza sobre a abrangência e velocidade do
contágio do novo coronavírus é necessário testar amostras representativas da
população toda, focando nas áreas de maior densidade demográfica e com maior
número de casos já registrados. Dependendo do número de testes disponíveis,
mais ou menos abrangente deve ser a amostragem, seguindo crescentemente esses
dois critérios. Ou seja, começando nas áreas com maior número de casos
registrados e com a maior densidade demográfica e na medida que mais kits de
testes forem sendo disponibilizados áreas menos afetadas e menos densas vão
sendo incluídas.
Por que não usar testes
com alta sensibilidade (que são bons para descartar a presença do vírus) e
liberar do confinamento quem testar negativo? Porque não é possível saber até
quando esta pessoa continuará livre do vírus. A qualquer momento ela poderá se
infectar e se tornar uma disseminadora da pandemia. Ou seja, neste contexto
devemos usar teste de alta especificidade para confirmar e isolar, ao invés de
teste de alta sensibilidade, pois um resultado negativo no meio de um surto de
uma pandemia não serve para muita coisa; pelo contrário, pode dar uma falsa
sensação de segurança.
Porque o “isolamento vertical”
(isolar somente os idosos e os não idosos vulneráveis devido a outras doenças)
é provavelmente uma alternativa mais imprudente do que o “isolamento
horizontal” (isolar todas as pessoas)
A
ideia de agilizar ainda mais o retorno às atividades econômicas e sociais
através do isolamento restrito apenas dos idosos e dos não idosos vulneráveis
(grupo de alto risco) é teoricamente boa e atraente. No entanto, há alguns
problemas com ela que a tornam imprudente neste momento (esta imprudência pode
custar milhares de vidas). Primeiro, ainda que a probabilidade de um não idoso
saudável necessitar de internação ou morrer seja bem menor do que esta
probabilidade no grupo de alto risco, ela existe. No Brasil a maioria da
população tem menos de 60 anos (86%, aproximadamente 180 milhões de pessoas).
Uma probabilidade pequena, mas espalhada em uma população grande, produz um
número significativo de casos. Se esta população não estiver em confinamento,
muitas vagas nos hospitais serão ocupadas por elas para tratar complicações da
COVID-19. Segundo, como já argumentado anteriormente, no Brasil há um número
grande de internações devido a batidas de carro, atropelamentos e violência e a
política de confinamento irrestrita diminui imediatamente a ocupação dos
serviços de saúde com esses transtornos. Terceiro, na prática é difícil
imaginar como seria possível isolar os idosos. Sem confinamento da população
não idosa o contágio nesta população será rápido e grande. Como idosos
geralmente necessitam de cuidadores mais jovens, seria difícil evitar que
muitos desses cuidadores fossem infectados e levassem o vírus para os idosos de
quem cuidam.
Resumindo
Neste
momento a prioridade é o confinamento radical de toda a população em suas
residências. Este confinamento pode durar de quatro a oito semanas. Caso este
confinamento não seja suficiente para frear ou eliminar este surto epidêmico,
teremos que paulatinamente começar a liberar do isolamento as pessoas que
tenham comprovadamente sido curadas da infecção pelo novo coronavírus. Para
isso, teremos que testar um grande número de pessoas na população utilizando
amostragens aleatórias e direcionadas a áreas de grande densidade demográfica e
que tenham tido maior número de casos registrados da COVID-19. Devemos utilizar
testes de alta especificidade para confirmar a presença da doença e evitar
testes de alta sensibilidade para descartar a presença dela, pois esses últimos
podem dar uma sensação falsa de segurança e levar a um aumento da disseminação
do vírus.
Paulo Nadanovsky, PhD
Epidemiologista da FIOCRUZ e da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Aviso: Sou epidemiologista, mas não
especialista em epidemiologia de doenças infecciosas. Leciono métodos
epidemiológicos no curso de doutorado e mestrado na Escola Nacional de Saúde
Pública da FIOCRUZ, no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro e no curso de graduação de medicina desta Universidade.
As opiniões neste artigo são minhas,
não representam necessariamente as opiniões de outros profissionais nas minhas
instituições muito menos o posicionamento oficial delas.
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