domingo, 31 de maio de 2020

Comparação do risco de morrer pela COVID-19 com o risco de morrer por outras causas no Brasil



          Ainda não se sabe se a COVID-19 será erradicada, se haverá vacina ou qual será a efetividade dela, se será uma virose sazonal, etc. Existe a possibilidade dela se estabilizar como mais uma doença dentre outras doenças infecciosas para as quais não há vacina, como por exemplo AIDS, que entre 2008 e 2018 apresentou uma taxa de mortalidade de 4 a 6 por 100 mil habitantes no Brasil (http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2019/boletim-epidemiologico-de-hivaids-2019).

Uma vez que a quantidade de mortes pela COVID-19 se estabilize (i.e., na hipótese de não ser erradicada ou bastante reduzida pela vacina), passa a ser importante quantificar o impacto relativo desta doença em comparação com outras causas de morte. Na data de hoje (31 de maio de 2020) este momento ainda não chegou no Brasil. De qualquer forma, a seguir faremos uma comparação provisória, tomando como parâmetro o risco de morrer por diferentes causas e por COVID-19 em abril e maio de 2020 no Brasil.

O excesso de mortalidade e a subnotificação de mortes pela COVID-19

          Antes de fazer esta comparação é necessário considerar a possibilidade de subnotificação de mortes pela COVID-19. Há relatos de que muitas pessoas que morreram pela COVID-19 não tiveram confirmação da infecção pelo SARS-CoV-2; parte dessas mortes não foi então registrada como tendo sido causada pela COVID-19[1]. Por isso, há quem defenda que o excesso de mortalidade durante os meses da pandemia seja a melhor forma de quantificar a real mortalidade causada pela COVID-19 (https://www.ft.com/content/a26fbf7e-48f8-11ea-aeb3-955839e06441).

          No estado de São Paulo o número de mortes por qualquer causa (mortalidade total) registrado nos meses de abril dos anos 2015 a 2019 variou de 24.009 a 25.543, com uma média de 24.236. Em abril de 2020, a mortalidade total foi de 27.728, revelando um excesso de mortalidade de 3.492 em abril de 2020 comparado à média de abril nos cinco anos anteriores (https://transparencia.registrocivil.org.br/registros - consultado em 13 de maio de 2020). O número de mortes confirmadas pela COVID-19 no mês de abril de 2020 pelo portal de estatísticas do estado de São Paulo da Fundação Seade foi de 2.239 (https://www.seade.gov.br/coronavirus/ - consultado em 13 de maio de 2020).[2]

             Esses dados revelam algumas coisas importantes. Primeiro, um excesso de mortalidade anormal e expressivo em abril de 2020, de 3.492 mortes. Este excesso de mortes deve ser em parte devido às mortes causadas diretamente pela COVID-19 e indiretamente por outros problemas de saúde que podem ter se agravado durante o mês de abril de 2020, até como consequência da COVID-19. Por exemplo, uma pessoa que tenha sofrido uma complicação cardiovascular e não teve acesso ao tratamento necessário (ou não foi ao hospital), pois o sistema de saúde estava priorizando o atendimento dos doentes com a COVID-19. Por si só este dado de excesso de mortalidade tem valor, pois expressa o impacto mais genérico da COVID-19 na mortalidade, já que há mortes por outras causas que não teriam acontecido não fosse pela pandemia de COVID-19. Portanto, há mortes que são causadas diretamente pela COVID-19 e outras que são causadas indiretamente por ela; o excesso de mortalidade é um indicador que engloba tanto as primeiras quanto as últimas.

          Em segundo lugar esses dados permitem fazer uma estimativa, ainda que imperfeita, da subestimação no número de mortes causadas diretamente pela COVID-19. Usando um raciocínio superficial rápido nós podemos calcular a diferença entre o excesso de 3.492 mortes e o número de mortes confirmadas pela COVID-19, que foi de 2.239, concluindo que houve uma subnotificação de 1.253 mortes pela COVID-19.

No entanto, não podemos concluir que esta diferença represente de fato a subnotificação de mortes pela COVID-19.  Para fazer uma estimativa válida desta subestimação seria necessário conhecer o excesso e redução no número de mortes por todas as causas de morte que podem ter se alterado em consequência da COVID-19 e das medidas para lidar com ela, tais como o confinamento domiciliar, o fechamento de escolas, comércio e serviços (alerta feito a mim pela Ana Paula Pires dos Santos). Além do aumento de mortes por outras causas que pode ocorrer como consequência indireta da COVID-19, deve ter havido também redução de mortes por outras causas em consequência das medidas para lidar com a COVID-19: um cuidado maior com a higiene e o fechamento de escolas reduzem outras doenças infecciosas, não somente a COVID-19; adiar tratamentos eletivos reduz morbidade e mortalidade por tratamentos desnecessários e danosos; reduzir mobilidade social evita mortes por batida no trânsito e homicídio.[3]

A subnotificação então pode ser maior ou menor do que a diferença entre o excesso de mortalidade e o número de mortes confirmadas pela COVID-19. Por exemplo, em casos extremos, tais como a África do Sul, onde foi encontrada uma diferença negativa (https://www.ft.com/content/a26fbf7e-48f8-11ea-aeb3-955839e06441), ou seja, durante a pandemia da COVID-19 a mortalidade total diminuiu ao invés de aumentar (talvez pela redução nas mortes por causas externas em consequência das medidas de restrição de mobilidade e confinamento), não significa que não tenha havido subnotificação de mortes pela COVID-19. Lá, pode ser que a redução nas mortes pelas causas externas tenha sido tão grande que compensou tanto as mortes confirmadas como não confirmadas pela COVID-19.

Refinando a estimativa de subnotificação de mortes pela COVID-19 no Brasil

Vamos retornar ao exemplo de São Paulo para ilustrar nosso raciocínio na tentativa de chegar mais perto da estimativa correta de subnotificação de mortes pela COVID-19 no Brasil.[4] Em São Paulo em 2019 morreram 5.433 pessoas no trânsito, o que equivale a uma média de 453 por mês (https://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/numero-de-fatalidades-de-transito-em-2019-registra-menor-indice-desde-2015-em-sp/). Presumindo que tenha havido uma redução de 40% nessas mortes em abril de 2020 (devido à redução na mobilidade), teriam ocorrido 181 mortes a menos no trânsito (https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/04/22/numero-de-mortos-em-acidentes-de-transito-em-sp-cai-313-durante-a-quarentena.htm). Além disso, foram 2.906 vítimas de homicídios em 2019, ou 242 por mês (https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-01/sao-paulo-tem-em-2019-menor-taxa-de-homicidios-desde-2001). Presumindo uma redução de 30%, seriam 73 mortes a menos em abril de 2020 (https://veja.abril.com.br/blog/radar/em-sp-homicidio-tem-queda-de-315-na-quarentena/). Então, considerando apenas a redução de mortes por causas externas (sem considerar, por exemplo, a redução de mortes por outras doenças infecciosas etc.), soma-se às 1.253 mortes (diferença entre o excesso na mortalidade e o número de mortes confirmadas pela COVID-19), essas 181 e 73. Assim, a estimativa de subnotificação subiria para 1.507 em abril de 2020. Então, o número “real” de mortes por COVID-19 em abril de 2020 no estado de São Paulo teria sido 1.507 (não registradas) mais 2.239 (confirmadas), i.e., um total de 3.746 (confirmadas + não registradas) (Figura).

Não obtivemos dados sobre redução ou aumento no número de mortes por outras causas específicas, além de mortes no trânsito e homicídio. Por isso, faremos aqui apenas uma simulação com dados hipotéticos para ilustrar como o aumento da mortalidade por outras causas, indiretamente devido à COVID-19, alteraria nossa estimativa de subnotificação de mortes por esta doença. Digamos que tenha havido 153 mortes a mais por infarto e 100 a mais por câncer em abril de 2020. Então, considerando apenas o aumento de mortes por infarto e câncer, subtrai-se das 1.253 mortes (diferença entre o excesso na mortalidade e o número de mortes confirmadas pela COVID-19), essas 153 e 100. Assim, a estimativa de subnotificação reduziria para 1.000 em abril de 2020. Então, o número “real” de mortes por COVID-19 em abril de 2020 no estado de São Paulo teria sido 1.000 (não registradas) mais 2.239 (confirmadas), i.e., um total de 3.239 (confirmadas + não registradas) (Figura).

Como não tivemos acesso aos dados sobre aumento ou redução de todas as causas de mortes separadamente, não temos como saber ao certo se essas 1.253 mortes (diferença entre o excesso na mortalidade e o número de mortes confirmadas pela COVID-19) é um indicador confiável da subnotificação. Por isso, presumimos o seguinte: primeiro, que essas 1.253 mortes não indicam diretamente a subnotificação, pois deve ter havido aumento e redução em outras causas de morte; segundo, o aumento de mortes devido ao efeito indireto da COVID-19, tais como mortes por doenças cardiovasculares e câncer, deve ser similar à redução de mortes devido ao efeito indireto das medidas para combater a COVID-19, tais como mortes por outras doenças infecciosas e por excesso de intervenções médicas (https://www.bmj.com/too-much-medicine); terceiro, como o Brasil é um país muito violento, apresentando consistentemente um número elevado de mortes no trânsito e homicídios, consideramos apenas as reduções nas mortes por essas causas no “ajuste” da subnotificação. Resumindo, as 1.253 mortes foram “ajustadas” apenas pela redução nas mortes no trânsito e homicídios, presumindo que as outras causas se anulam, i.e., aumentam e diminuem em quantidades similares (Figura).

Então, estamos presumindo que a subnotificação de mortes pela COVID-19 deve ser maior do que a diferença entre o excesso de mortalidade e o número de mortes por COVID-19 confirmadas. Em outras palavras, acreditamos que o excesso de mortalidade subestime o número de mortes pela COVID-19 no Brasil. Por isso, para estimar o número “real” de mortes pela COVID-19 no Brasil, optamos por “ajustar” o excesso de mortalidade pela redução nas mortes por causas externas. Utilizamos os dados de São Paulo como base para este “ajuste”.

Como já vimos, em São Paulo foram 2.239 mortes confirmadas pela COVID-19. Temos que somar a essas, as mortes por COVID-19 não registradas (subnotificação). A diferença entre o excesso na mortalidade e o número de mortes confirmadas pela COVID-19 foi de 1.253 e a redução nas mortes no trânsito e homicídio foi de 181 e 73, i.e., 254 mortes. O número de mortes por COVID-19 não registradas então seria 1.253 + 254, ou seja, 1.507. Então, o número “real” de mortes por COVID-19 em abril de 2020 no estado de São Paulo teria sido 1.507 (não registradas) mais 2.239 (confirmadas), i.e., um total de 3.746 (confirmadas + não registradas) (Figura). Como foram 2.239 mortes confirmadas pela COVID-19 de um total de 3.746 que aconteceram “de fato”, o número “real” de mortes pela COVID-19 foi 67% mais alto do que o número confirmado de mortes pela COVID-19.

 Presumindo que a subnotificação de mortes pela COVID-19 no Brasil seja similar ao que calculamos para o estado de São Paulo, aplicaremos uma correção aos dados do Brasil multiplicando o número de mortes confirmadas pela COVID-19 por 1,67.  Ou seja, vamos considerar que, no Brasil, o número “real” de mortes pela COVID-19 é 67% mais alto do que o número confirmado de mortes pela COVID-19, assim como foi nossa estimativa para São Paulo.

O risco de morrer pela COVID-19 e por outras causas no Brasil

A tabela apresenta o número de mortes e taxas de mortalidade por 100 mil habitantes pelas diferentes causas no Brasil em 2017[5]. Inserimos também duas estimativas para a COVID-19 com base no número de mortes em abril e em maio de 2020, corrigindo para o número de mortes pela COVID-19 não notificadas (subnotificação).  O número confirmado de mortes pela COVID-19 no Brasil em abril de 2020 foi 5.307 (https://ourworldindata.org/covid-deaths). Considerando a subnotificação, o número “real” de mortes pela COVID-19 em abril teria sido 8.863 (5.307 x 1,67). Multiplicando por 12 meses, teríamos 106.356 mortes no ano, que equivale a uma taxa de 51 mortes por COVID-19 por 100 mil habitantes. Esta é uma taxa altíssima, abaixo apenas de todos os tipos de doenças cardiovasculares e de todos os tipos de câncer. Em maio foram 23.368 mortes confirmadas pela COVID-19 (https://ourworldindata.org/covid-deaths). “Ajustando” pela subnotificação, o número “real” teria sido 39.024 (23.368 x 1,67). Se o número de mortes pela COVID-19 ficar estabilizado neste valor, teríamos 468.294 mortes por ano, equivalente a uma taxa de 225 por 100 mil por ano. Em maio de 2020 a taxa foi de 19 por 100 mil, a mais alta de todas as causas de morte, acima das doenças cardiovasculares (16 por 100 mil) e todos os tipos de câncer (10 por 100 mil).[6]

Conclusão

Essas estimativas são importantes não somente para termos uma ideia do tamanho da subnotificação e conhecermos o número “real” de mortes pela COVID-19 neste momento mas, mais importante, considerarmos que se a incidência da COVID-19 permanecer neste patamar, quando as medidas restritivas de mobilidade forem relaxadas, escolas reabrirem e a vida voltar relativamente ao normal, as batidas no trânsito, a violência urbana, outras doenças infecciosas e os procedimentos médicos eletivos danosos devem voltar ao padrão usual, de antes da pandemia. Então, o impacto da COVID-19 poderá ser ainda maior, pois ao contrário deste momento de crise em que estamos testemunhando a COVID-19 substituindo em parte outras causas de morte, poderemos ter que lidar no futuro próximo com a COVID-19 se somando a essas outras causas de morte.




Figura) Excesso de mortalidade como indicador do número “real” de mortes pela COVID-19, estado de São Paulo, abril de 2020
CV = COVID-19

Tabela) Número de mortes e taxa de mortalidade por 100 mil habitantes1 pelas diferentes causas, no Brasil em 20172. A COVID-19 é uma estimativa com base no número de mortes em abril e em maio de 2020.

Causa da morte
Número
Taxa
ano
Taxa
mês
COVID-19
maio 20203
468.294
225
19
Doenças cardiovasculares
388.268
187
16
Cânceres
244.969
118
10
COVID-19
abril 20204
106.356
51
4
Infecções respiratórias inferiores
84.073
40
3
Demência
73.419
35
3
Doenças respiratórias
72.746
35
3
Doenças digestivas
72.556
35
3
Homicídio
63.825
31
3
Diabetes
56.474
27
2
Trânsito
46.282
22
2
Doenças do fígado
36.269
17
1
Doença do rim
35.350
17
1
Neonatal
21.265
10
1
HIV / AIDS
15.406
7
1
Suicídio
14.145
7
1
Etc.
...
...
...
Total
1.287.605
619
52

1- Taxa calculada com base em uma população de 208 milhões de habitantes (Brasil em 2017); 2- O ano de 2017 foi o ano mais recente para o qual conseguimos acesso aos dados; 3- Essas 468.294 mortes pela COVID-19 projetadas para um ano derivam do número de mortes em maio de 2020, que foi de 23.368, multiplicado pela correção da subnotificação (1,67), que é igual a 39.024 e então multiplicado por 12 (meses). 4- Essas 106.356 mortes pela COVID-19 projetadas para um ano derivam do número de mortes em abril de 2020, que foi de 5.307, multiplicado pela correção da subnotificação (1,67), que é igual a 8.863 e então multiplicado por 12 (meses).



APÊNDICE
O número estimado de mortes por COVID-19 no Brasil a partir do número de pessoas que já foi infectado (pesquisa nacional de sorologia) e da letalidade do SARS-CoV-2 (1%, 1,5% ou 2%), e o número confirmado de mortes por COVID-19 “ajustado” para a subnotificação.

Março, Abril e Maio, Brasil

Número estimado de mortes pela COVID-19:

População brasileira, 208.000.000
1,4% já foi infectado pelo SARS-CoV-2 (EPICOVID19)
1,4% de 208.000.000 = 2.912.000
Letalidade = 1%, 1% de 2.912.000 = 29.120 mortes
Letalidade = 1,5%, 1,5% de 2.912.000 = 43.680 mortes
Letalidade = 2%, 2% de 2.912.000 = 58.240 mortes

Número confirmado de mortes pela COVID-19:

28.834 mortes (Our World in Data)
“Ajustado” pela subnotificação, 28.834 x 1,67% = 48.153 mortes




[1] Existem também relatos anedóticos de que médicos tenham evitado atestar na declaração de óbito que a morte foi causada pela COVID-19 a pedido da família. Há inúmeras circunstâncias que podem levar à subnotificação de mortes pela COVID-19 durante esta onda epidêmica.
[2] O número de mortes confirmadas ou suspeitas pela COVID-19 informadas no portal da transparência, registro civil, foi de 2.915 (https://transparencia.registrocivil.org.br/especial-covid - consultado em 13 de maio de 2020).
[3] Além da subnotificação há a possibilidade de sobrenotificação de mortes pela COVID-19. Durante a pandemia, quando não há possibilidade de confirmação através de teste diagnóstico a presença de sinais clínicos sugestivos de COVID-19 pode ser suficiente para levar médicos a declarar no atestado de óbito que a causa da morte foi COVID-19; parte desses pacientes morreu por outras causas. Além disso, houve pessoas que morreram com COVID-19, mas não de COVID-19 – por exemplo, pacientes idosos fragilizados que morreriam naquele momento mesmo se não tivessem contraído COVID-19 (https://www.straight.com/covid-19-pandemic/stanford-university-researcher-john-ioannidis-relies-on-data-to-puncture-some-of-myths-about).
 [4] Escolhemos São Paulo, pois os dados de lá costumam estar mais atualizados e corretos do que dos outros estados.
[5] Ano mais recente para o qual conseguimos dados.
[6] Foi interessante notar que as nossas estimativas “ajustadas” pela subnotificação estão coerentes com estimativas realizadas a partir do número de pessoas que já foi infectado (pesquisa nacional de sorologia) e de uma letalidade do SARS-CoV-2 entre 1,5 e 2% (APÊNDICE).

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Está errado comparar o número de mortes pela COVID-19 entre países sem considerar o tamanho da população em cada país? Não.



Muitas pessoas questionam se está errado comparar o número de mortes pela COVID-19 entre países sem considerar o tamanho da população em cada país. A impressão que muitos têm é que um país com população maior naturalmente terá mais mortes, por isso seria necessário comparar a taxa de mortalidade (por exemplo, número de mortes por milhão de habitantes) ao invés do número absoluto de mortes.

Embora esta seja uma impressão compreensível (intuitiva), ela não está correta. Não é necessário considerar o tamanho da população para comparar o número de mortes. Na verdade, comparar taxa de mortalidade pode ser pior do que comparar número de mortes, pois confunde o entendimento do fenômeno (o fenômeno que está se tentando entender é a velocidade de progressão da doença na população).

A chave para entender o raciocínio é a seguinte: o risco de morrer por uma doença infecciosa é determinado pelo número básico de reprodução da infecção (R0), i.e., o número médio de pessoas que é infectado por cada pessoa infectada em uma população em que todas as pessoas são suscetíveis. O R0 pode ser influenciado por várias características da população, mas não necessariamente pelo seu tamanho (o R0 frequentemente é menor em países com populações maiores e vice-versa).

A lógica do raciocínio é análogo aos estudos em genética, de ancestrais e descendentes. Cada surto de infecção tem uma cadeia de ancestrais e descendentes que vai se desencadeando, dentro de populações, independentemente do tamanho populacional, mas totalmente dependente do R0. Por exemplo, R0=3 significa o ancestral 1 infectando três descendentes (em 15 dias, no caso do SARS-CoV-2), passados mais 15 dias cada um desses três descendentes infectando nove descendentes e assim sucessivamente.

A China, com mais de um bilhão de habitantes, produziu por volta de 4,5 mil mortes pela COVID-19, enquanto o Brasil, com 212 milhões, produziu até este momento mais de 16 mil. Obviamente, se a epidemia se alastrasse de forma descontrolada até que toda a população de cada país fosse infectada (ou uma proporção elevada), o número cumulativo de mortes seria maior nos países mais populosos. Por exemplo, se a letalidade for de 1%, um país com 1 bilhão de habitantes, todos infectados, terá 10 milhões de mortes acumuladas; um país com 100 milhões de habitantes, todos infectados, terá 1 milhão de mortes acumuladas. Não seria nem possível um país com 500 mil habitantes ter o número de mortes acumuladas desses dois primeiros países. Mas o teto populacional de suscetíveis está longe de acontecer nesta pandemia. Neste momento, em que a grande maioria das pessoas nos países é suscetível e nenhum país já se aproximou da exaustão (do teto) no número de pessoas que ainda pode ser infectado e morrer, o tamanho populacional é irrelevante para o risco de ser infectado.

Outra forma de raciocinar que ajuda a clarear a questão é a seguinte. O fator de risco (ou exposição de interesse) no caso da COVID-19 não está “no ambiente”. Ele está nos indivíduos infectados. A poluição do ar, a dieta ultra processada e a renda per capita são exposições ambientais às quais toda a população está exposta. Nesses casos, não faz sentido comparar o número de pessoas em cada país com doenças causadas por essas exposições, pois obviamente, os fatores de risco (as exposições) estão afetando uma quantidade maior de pessoas em países maiores e vice-versa. Isso não acontece com a COVID-19. Independentemente do tamanho do país, seja ele a China com mais de um bilhão de pessoas, ou o Brasil com 212 milhões, a exposição (o fator de risco), i.e., o SARS-CoV-2, não está sendo exposto à população toda “no ambiente”. Somente quem encontra um indivíduo infectado está exposto. Pode-se mesmo indagar se a probabilidade de uma pessoa se infectar é maior em um país com uma população grande ou pequena. Possivelmente, em um país com população pequena a chance de uma pessoa encontrar um indivíduo infectado seja maior do que em um país com população grande (não acho que seja, mas somente para argumentar que não há nada a priori que justifique a obrigatoriedade de comparar países usando taxas ao invés de número de mortes).   

Por que comparar taxa de mortalidade pode ser pior do que comparar número de mortes, quando o objetivo é comparar a velocidade de propagação da doença na população? Porque ao utilizar a taxa fica a impressão de que a velocidade de propagação da doença na população está diretamente relacionada ao tamanho populacional, o que não é verdade e desvia a atenção dos fatores importantes. Por outro lado, se o objetivo for quantificar a importância relativa da COVID-19 em relação a outras causas de morte na população, ou o impacto da doença na sociedade (por exemplo, a sobrecarga dos serviços de saúde), aí sim é necessário comparar taxa de mortalidade ao invés de número de mortes. Como, em momento de pandemia (ou seja, quando a quantidade de pessoas com a doença está aumentando rapidamente), não é possível saber qual será a extensão da doença na população e o interesse principal ainda é descobrir a velocidade de propagação, a taxa de mortalidade oferece informação obscura; ela retira o foco da velocidade de propagação (que é o mais importante naquele momento) e desvia a atenção para a importância relativa da doença como causa de morte (ainda que ajude a apontar o quanto a população deve estar sendo impactada). Como não se sabe qual será a extensão da doença, não é relevante ainda avaliar a sua importância relativa como causa de morte e o seu impacto na população, pois tudo isso pode mudar radicalmente em um período curto de tempo. Quando o número de novos doentes na população estabilizar e descobrirmos como será a dinâmica desta doença infecciosa nas populações humanas (Será suprimida? Será sazonal? Haverá imunidade adquirida duradoura? Etc.), passará a ser mais relevante prestarmos atenção à taxa de mortalidade do que ao número de mortes.  


Paulo Nadanovsky, PhD.
Epidemiologista da Fiocruz e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Brasil continua aumentando o número de mortes diárias registradas por COVID-19

 Rio de Janeiro, 8 de maio de 2020


No post de 27 de abril (https://nadanovsky.blogspot.com/2020/04/por-que-o-brasil-mesmo-depois-de-mais.html) constatamos que mesmo depois de mais de quatro semanas de confinamento domiciliar o Brasil ainda apresentava um aumento no número de mortes diárias registradas. Depois de analisar várias explicações alternativas concluí que a mais provável era a seguinte: o confinamento domiciliar foi adotado, de fato, apenas por uma quantidade insuficiente da população.

No post de hoje, 10 dias depois, as barras do 43º-45º, 46º-48º e 49º-51º dia (aproximadamente um período de 10 dias entre o final de abril e o início de maio de 2020) demonstraram que, pela primeira vez desde o início da pandemia no Brasil, o número de mortes diárias permaneceu estabilizado, i.e., parou de crescer (Figuras 1 e 2). No entanto, a barra do 52º-54º dia mostrou um crescimento dramático para 659 mortes diárias registradas.

A Itália e a Espanha, desde que pararam de apresentar aumento no número de mortes diárias (no 37º-39º e 31º-33º dia, respectivamente), vêm apresentando redução consistente nas mortes diárias, pelo menos até este momento (no 76º-78º e 64º-66º dia, respectivamente). EUA e Reino Unido pararam de apresentar aumento (no 46º-48º e 37º-39º dia, respectivamente), mas ainda não mostraram redução consistente no número de mortes diárias registradas até este momento (no 67º-69º e 61º-63º dia, respectivamente). A Itália e Espanha chegaram a registrar 872 e 915 mortes diárias, respectivamente (30 a 40 dias após o registro da primeira morte), e mais recentemente, por volta de um mês depois, apresentaram 281 e 293 (Itália nas duas barras mais recentes) e 201 e 214 (Espanha nas duas barras mais recentes) mortes diárias. Os EUA atingiram 2.959 mortes diárias registradas na barra do 46º-48º dia e os dados mais recentes, por volta de 20 dias depois, ainda apresentaram 1.559 e 1.916 mortes diárias; isto indica algum sinal de redução, porém ainda sem a consistência e o tamanho apresentados por Itália e Espanha. O Reino Unido atingiu 926 mortes diárias registradas na barra do 37º-39º dia e por volta de 20 dias depois ainda apresentou 678 e 432 mortes diárias; assim como os EUA, é um sinal de redução, mas ainda não tão grande e consistente quanto na Itália e Espanha.

A Coreia do Sul vinha mantendo desde o 10º até o 75º dia o mesmo número de novas mortes diárias, variando de três a sete. De lá para cá, no 76º-78º dia de seu surto, caiu para menos de duas mortes. A Coreia desde o início vem testando amostras populacionais para detecção do SARS-CoV-2, identificando as pessoas com resultado positivo e isolando-as por duas ou três semanas. A Coreia em nenhum momento até o 78º dia desde a primeira morte confinou toda população em casa.




Figura 1. Número de mortes (eixo vertical) em escala logarítmica.

* Dia 1 (Dia em que houve a primeira morte registrada de COVID-19): Brasil, Março 17; Coreia do Sul, Fevereiro 20; Itália, Fevereiro 21; Espanha, Março 1; EUA, Fevereiro 29; Reino Unido, Março 5.

* O número diário de novas mortes é sujeito a variações aleatórias que dificultam observar claramente se a tendência é ascendente, estacionária ou descendente. Por isso, os gráficos neste post apresentam uma média de três dias para representar o número diário de novas mortes. Por exemplo, no 31º, 32º e 33º dia após a primeira morte por COVID-19 registrada na Coreia do Sul houve três, uma e nove novas mortes, respectivamente; a média diária então foi de 4,33 que equivale aproximadamente a quatro mortes nos dias 31-33 (D31-33). Dessa forma evitamos ser confundidos por oscilações aleatórias irrelevantes.

* O número limitado de testes para confirmação do diagnóstico da COVID-19, as diferenças no número de sub e sobre notificações de mortes por COVID-19 entre os países e em diferentes momentos em um mesmo país e outras dificuldades na atribuição da causa de morte, significa que o número de mortes registradas (e relatadas nos gráficos) pode não ser uma contagem acurada do verdadeiro número de mortes pela COVID-19. Por exemplo, os EUA relataram no dia 15 de abril uma mudança no critério de diagnóstico – a partir daquele dia, não haveria mais necessidade de confirmação de teste diagnóstico laboratorial (por exemplo, PCR) para classificar uma morte pela COVID-19, bastando apenas o diagnóstico clínico. Neste dia o número de novas mortes registradas pulou de 1541 no dia anterior (14 de abril) para 2408 e para 4928 no dia seguinte (16 de abril). Esses foram o 46º, 47º e 48º dias do surto naquele país (a barra verde na série dos EUA deve ser mais saliente, pelo menos em parte, devido a esta mudança de critério de registro).





Figura 2. Número de mortes (eixo vertical) em escala linear. As barras da Coreia do Sul não aparecem, pois os números de mortes são muito pequenos. Outras explicações deste gráfico estão na figura 1.



Interpretação dos dados

Uma das hipóteses que consideramos no post de 27 de abril foi que no Brasil as mortes por COVID-19 registradas em um determinado dia podem refletir na realidade mortes que ocorreram duas ou três semanas antes. Neste caso, pode ser que o pico de mortes diárias já tenha sido atingido, mas como muitas mortes passadas não foram ainda confirmadas, elas não contribuíram para a altura das barras passadas, mas ainda continuam a contribuir para a altura das barras atuais. Neste caso, o pico teria já de fato sido atingido, porém, por enquanto não está sendo possível detectar este fato pelos dados de registros de mortes. Alternativamente, este platô identificado entre 27 de abril e 5 de maio pode ter escondido mortes que estavam se acumulando e foram registradas tardiamente (dias depois), processo que continua similar e persistente, dissipando na barra mais recente (52-54º dia, i.e., 7 a 9 de maio) a impressão de que o Brasil já poderia estar cessando o aumento no número de mortes diárias.

Uma outra hipótese que consideramos no post de 27 de abril foi que o Brasil deve apresentar surtos locais ou regionais em momentos diferentes. Se isto de fato estiver acontecendo, ou vier a acontecer, e os surtos fora de São Paulo e Rio se tornarem preponderantes (por exemplo, Ceará, Pernambuco, Amazonas e Pará parecem estar neste caminho), o Brasil seguiria um caminho similar aos EUA e Reino Unido; i.e., apresentando dificuldade para reduzir muito e consistentemente o número de mortes diárias depois de atingir o pico nesta primeira onda da pandemia. É possível que por serem países mais populosos e mais diversos geográfica e culturalmente do que Itália e Espanha, estejam enfrentando surtos locais ou regionais em momentos diferentes, mais do que Itália e Espanha enfrentaram. Por exemplo, Nova York já estava reduzindo o número de mortes diárias enquanto outros estados estavam aumentando. Por outro lado, caso o Brasil consiga suprimir a pandemia em outros estados (por exemplo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul parecem estar tendo sucesso em suprimir a pandemia até este momento), podemos esperar que, após os surtos em São Paulo e no Rio, haja um desenrolar mais similar ao verificado na Itália e Espanha, com redução grande e consistente no número de mortes diárias no país.

A heterogeneidade dentro de estados e cidades como Rio e São Paulo pode levar a ainda mais aumentos no número de mortes diárias quando a infecção se alastrar por bairros e municípios ainda pouco afetados. Estados como Ceará e Pernambuco podem ainda apresentar aumento no número de mortes tomando o lugar de São Paulo e Rio como os maiores focos da pandemia no Brasil. O estado de São Paulo, desde 23 de abril até hoje, não tem mais apresentado um aumento consistente no número de registros de mortes diárias. Isso pode indicar que o grande aumento observado no Brasil desde 6 de maio deve ser devido ao aumento em outros estados, com surtos posteriores ao de São Paulo. O estado do Rio de Janeiro, por exemplo, apresentou um aumento grande a partir de 6 de maio, com 58, 82, 189 e 109 novas mortes diárias em 5, 6, 7 e 8 de maio.

Implicações

Não é possível prever o caminho que o Brasil trilhará, ainda mais diante de tanto titubeio, inconsistência, apatia e descoordenação das autoridades federal e locais. As únicas alternativas disponíveis no momento para tentar evitar a continuação no aumento no número de mortes (e os casos graves da doença e todo sofrimento que os acompanham) é o confinamento da população toda e o rastreamento das pessoas infectadas e seus contatos (direcionado a locais onde há mais pessoas infectadas e prioritariamente em comunidades pobres), com fornecimento pelo estado de locais para quarentena e ajuda financeira para as pessoas infectadas que não tenham como fazer a quarentena na própria residência. Infelizmente, pode ser necessário que o estado recorra ao confinamento forçado (ao invés do confinamento recomendado), pois até agora tudo indica que a população não tenha se confinado suficientemente. A quantidade de pessoas aproveitando a orla das praias, os parques, as praças, os bares, os campos de futebol e vários outros locais de lazer, dão indicação clara de que o confinamento pode ser bem mais efetivo, mesmo descontando as pessoas que precisam trabalhar fora de casa. Tínhamos esperança de que não precisaríamos recorrer ao confinamento forçado (https://nadanovsky.blogspot.com/2020/03/a-tragedia-dos-bens-comuns-e-pandemia.html), mas neste momento não há outra alternativa humanista, já que ainda não houve a mobilização necessária do governo, empresários e autoridades sanitárias para investir na produção de testes e implementação de estratégias de rastreamento de pessoas infectadas e seus contatos.



Paulo Nadanovsky, PhD.

Epidemiologista da Fiocruz e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.